terça-feira, 28 de maio de 2013

Depoimento sobre saúde sexual e reprodutiva


Lyah Correa é Psicóloga Transexual, Participante do Grupo de Trabalho  de Gênero e Diversidade do Conselho Regional  de Psicologia – 10.  Militante do MLGBT do Pará.  Servidora na Secretaria Municipal de Saúde- SESMA.  Sua narrativa dos processos de subjetivação apresenta algumas dores e suportes internos para tornar-se quem é.

Estou longe de fazer um tratado científico sobre gênero ou debater academicamente a questão. Dane-se! Cansei da “aristocracia do diploma” (e também dos diplomatas)! Quero apenas poetizar sobre mim a partir de minhas múltiplas maneiras de imaginar e escrever livremente.

Quando criança, minha bola de futebol representava as formas como poderia girar pela minha rua, pelos meus pensamentos. Isso era mais que um arranjo matemático de probabilidades, eram combinações de “n” possibilidades existenciais.

Não foi diferente com as bonecas que habitavam meu sofá. Elas eram tão lindas que me tornava insignificante diante de tanta beleza. Talvez, eram as únicas damas de honra às quais se permitiam me acompanhar pelos corredores da infância.

Em meio aos sabores da ludicidade, meus pais confabulavam meu futuro, prediziam minhas metas desde minha época intra-uterina. Ao contrário da Promessa em Azul e Branco, conferida à infância de Eneida de Moraes, fiquei no muro das indecisões a espera de um lugar social.

Para meu pai, eu seria uma ótima bailarina chamada Natália. Já para minha mãe, seria um imperfeito artesão por nome João. Nesse duelo de (im) possibilidades, continuava a destrinchar meu mundo imaginário com batons que utilizava para pintar a parede do meu quarto ou com os carrinhos que se despedaçavam em acidentes de trânsito no quintal da minha casa.

Foi nessa fase da vida que percebi que os jardins nem sempre são floridos e que nem sempre conseguia completar a contagem das estrelas. Lembro-me da exata tarde na qual meu pai colocou a última mala em um carro qualquer, deu-me um beijo no rosto e partiu. Minhas pernas sempre foram finas e longas, porém, não tão ágeis para alcançar o veículo o qual transportava, para sempre, meu super-herói, meu parceiro de brincadeira, meu contador de histórias.

A mim, restaram as agruras de enfrentar os deboches por ser considerada um complexo edipiano mal resolvido e também de enfrentar uma mãe fálica com potencialidades de me reduzir a estados de não-ser.
E o tempo passou como passavam as chuvas que me banhavam aos finais de tarde. Reconfigurei minhas possibilidades de existir. Minha bola de futebol e bonecas? Sumiram no tempo e espaço, porém, seus simbolismos se corporificaram em mim. Passei a transfigurar, ao mesmo tempo, o garoto de alma feminina e a garota ultrajante de modos masculinos.

Talvez meu processo de socialização tenha me garantido o pleno aval de construir meus castelos e casebres reais, bem como destruí-los na medida em que desejasse ter a lua como teto. Além de desfrutar, sobre meu corpo, de outros corpos capazes de me fazer delirar em loucas serenatas.

Não lembro mais da cor do carro que levou meu pai, contudo, minhas pernas continuam finas e longas. Minha mãe já não é mais tão fálica assim, mas conseguiu me conservar no estado de não-ser das imperfeições existenciais.

Nas várias possibilidades de me reinventar, apaixonei-me mais de mil vezes pelo espelho em tentativas narcísicas de me idealizar, assim como perdi as contas de quantos quebrei por não aceitar meu reflexo.
Hoje, não me tornei a bailarina ou o artesão profetizado pelos meus pais. Também não assumi a conveniência social de me tornar um rapaz comportado ou uma moça transgressora, apenas me permiti a relembrar meu passado bucólico pintando a parede do quarto com batom ou me aventurado no louco trânsito do quintal da minha casa.role de Endemias.

Fonte:
http://fenomenologiadasolidariedade.wordpress.com/2013/05/24/depoimento-sobre-saude-sexual-e-reprodutiva/

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