domingo, 9 de março de 2014

Transição - A historia do meu cabelo



Achei esse vídeo por acaso, essa moça é bem It Girl, o vídeo é direcionado apenas para questão de beleza não há diretamente uma discussão sobre racismo, nada contra muito pelo contrario que bom que nossas meninas tem um IT Girl Negra, o vídeo também conta, como ela mesma diz, sobre o processo de transição do cabelo químico para o crespo, na verdade eu trocaria essa palavra transição para aceitação, afirmação, ou qualquer palavra que traga esse significado de assumir a sua identidade. 

O que me chamou atenção no vídeo é justamente a rotina de varias meninas negras, novamente, por mais que o vídeo não trate de questões raciais todos nós sabemos que o principal motivo para ao alisamentos é o racismo.

Quando assisti refleti sobre varias coisas e me fez lembrar sobre a minha vida, dessa rotina que um dia já foi minha.




A historia do meu cabelo

por Claudia Arruda - Kaiadi de Matamba


Minha mãe carnal, Dona Angelina, tem um historia muito complicada de rejeição por ser negra, quando o pai dela se separou da minha vó, ele escolheu apenas as filhas de pele mais clara pra ir embora com ele, e como minha mãe tinha a pele mais escura ficou morando com minha vó no interior na Bahia passando muita dificuldade enquanto as outras irmãs vieram para São Paulo, para a cidade cheia de possibilidades. Infelizmente minha mãe não conseguiu reverter o preconceito, a rejeição em luta e ela tem dificuldades com isso até hoje.
 


 Quando era criança eu não gostava de pentear os cabelos por vários motivos: meu cabelo é crespo então só pode ser penteado molhado com creme, minha mãe não tinha paciência então doía, além de ficar ouvindo coisas do tipo “cabelo bom é cabelo liso”.

Primeiro Alisamento
A primeira vez que minha mãe alisou o meu cabelo foi no meu aniversario de 6 anos, não foi com produto químico, ela usou pente quente, um pente de ferro, que era esquentado no fogo do fogão, quando o pente passava no meu cabelo sentia cheiro de queimado e era muito comum queimar as orelhas, ou a mão de quem fazia, esse processo demorava horas, me lembro da minha mãe intercalar com a minha tia porque doía os braços.

O resultado não era bom, o cabelo ficava liso, mas continuava armado, então minha mãe enrolava meu cabelo fazendo uma toca esticando, amarrando com grampos, o mais apertado possível, a cabeça doía, e eu dormia assim, tudo isso para que no dia seguinte o cabelo amanhecesse mais “baixo”.

Na infância eu tinha 3 penteados:
1º Trança:
Não era como nos dias de hoje, essas tranças lindas, eram tranças soltas, ou grudadas na cabeça, não era bonito, era bem apertada porque tinham que durar 15 dias. Eu tinha muita dor de cabeça, uma vez a professora mandou um bilhete dizendo para minha Mãe que eu não podia ir pra escola de trança porque tinha comportamentos agressivos e não prestava atenção na aula, porque será?

2ª Birotinhos
Eram mini “coques”, parecido daquela moça Gilmelândia da Bahia sabe? Mas ao contrario dela o meu birotinho não tinha beleza, era um lá, um cá e sempre ficava dois na frente como se fosse chifres, imagina o que eu ouvia na escola.

3º Cabelo “Liso” no pente
Esse era só pros dias de festa, quando chegava à escola o preconceito piorava mais um pouquinho, porque de neguinha do sarava eu me tornava neguinha do cabelo de vassoura.

Ai veio a adolescência... 

As melhores amigas da escola sempre eram as garotas brancas, magras, loira e com o cabelo liso, isso quando não tinha uma japonesa, eu sempre fui a cota na minha sala, a maior quantidade de garotas negras no colegial era no horário noturno, justamente porque já tinham a missão de cuidar da casa, dos irmãos enquanto a mãe trabalhava fora, isso quando elas não deixavam a escola.

Portanto para ser bonita como elas, garotas brancas, magras, loiras e com o cabelo liso, eu tinha que emagrecer e ter o cabelo liso, já que ficar branca não era possível, mas antes de partir para o alisamento veio a moda da franjinha, e como eu ia ter franja?

Meu cabelo é crespo!

Ai uma “amiguinha” da escola, de cabelo liso claro, me disse que era só fazer uma franja falsa, perguntei como fazia isso, ela disse que era só puxar uma mecha de cabelo e cortar que ele ia cair sobre a minha testa.
Cheguei em casa cortei o cabelo, depois lavei, ficou todo caído sobre a testa até secar, quando o cabelo secou...rs

Resultado: parecia aba de boné quando vira pra cima sabe?

Foi quando aprendi que cabelo crespo cresce para cima, ele só cai quando tem volume, imagina as coias que eu não ouvi na escola. Minha testa, que já não é pequena, ficou ainda mais em evidencia, e fui chamada carinhosamente de pista de piche.


A Primeira Química
A primeira vez que eu coloquei química no meu cabelo eu tinha 8 anos, foi em um salão no terminal central, a cabeleireira ensinou como fazia o processo em casa, a primeira vez o cabelo soltou os cachos, não ficou liso, a manutenção era de 6 em 6 meses, ai passou de 4 em 4, 3 em 3 até chegar no mensal.
Meu cabelo caiu e nunca ficou liso como das outras meninas.

Momento cai a ficha
Teve uma vez que ouvi de um dos meus “amigos” que eu só era amiga dele, só podia frequentar a casa, que seu  pai só gostava de mim porque eu era preta de alma branca por ser filha de uma Mulher Negra com um Homem Branco.

Quando chegava visita eu nunca era apresentada como amiga das japonesas e sim como a filha da moça que limpa minha casa.

Fiquei quase 2 meses sem ir pra escola porque ouvi no banheiro da escola minha “amiga” confidenciando para uma outra “amiga", que a mãe a tinha proibido de conversar comigo porque eu era negra.
Então com o tempo eu fui entendendo que a solução não era alisar o cabelo, não era emagrecer, que para fazer parte daquele grupo precisava de muito mais, não bastava agir como branca eu precisa ser branca, a minha pele, a minha cor incomodava.

Ai me dei conta do que eu estava fazendo comigo e tive o entendimento de que eu NÃO QUERIA SER BRANCA, que quando eu sou excluída é o momento em que eu digo NÃO QUERO FAZER PARTE DISSO.

Aceitação
Eu só aceitei o meu cabelo, a minha negritude aos 15 anos porque comecei a participar de encontros da juventude, depois veio a filiação ao PT, o movimento LGBT, o Candomblé.

Foi o movimento social que me transformou que me disse quem eu era, porque a escola nunca fez esse papel, muito pelo contrario ela sempre reafirmou que negro era escravo e ponto, na minha casa esse dialogo racial nunca existiu, apesar do meu pai ser sindicalista e bem articulado.

Nunca é tarde para retornamos a nossa origem, nunca é tarde pra reconhecermos a nossa ancestralidade, mas penso que quando a gente aprende isso tudo desde pequeno, dentro de nossas casas nos livra de tanto sofrimento, se minha mãe tivesse dito que eu era descendente de Reis e Rainhas da África teria usado minha coroa há muito mais tempo.