sábado, 12 de outubro de 2013

'Quero mais é que meu neto me chame de vovô', diz a psicanalista transgênero Letícia Lanz


“Rejeito qualquer tipo de rótulo”, declarou a psicanalista Letícia Lanz durante a participação no programa Na Moral, da TV Globo, em que discutia a vivência transgênero ao lado de outras personalidades trans. Na atração, Letícia – que se definiu ao jornalista Pedro Bial como simplesmente “gente” - revelou as pelejas de se assumir trans depois de 50 anos, um enfarto, um casamento hétero de 27 e três filhos.
Hoje, casada há 37 anos com a mesma mulher, a arquiteta e psicologa Angela Dourado, ela declara que o apoio da família foi 100% responsável para a nova etapa. Mesmo assim, ainda é chamada de pai pela filha e de avô pelo neto. Desconforto para algumas da comunidade trans e sinônimo de verdadeira transgressão para Letícia, que rejeita as identidades binárias.

“Pode me chamar de Geraldo, diz que sou marido... Mas também pode me chamar de Letícia, uma diva...”, sugere ela [ou ele] com bom humor para a abertura da entrevista. Segundo Letícia, a luta não é por uma identidade de gênero – ou por um tratamento congruente ao gênero apresentado, comumente associado às reivindicações trans – mas por direitos
Abaixo, ela revela com muita sinceridade a diferença das lutas, os males dos rótulos e os problemas que reproduzimos sem questionamentos. Uma entrevista transformadora, com reflexões contemporâneas e que promete embaralhar as normas e dar luz a pensamentos importantes sobre nós mesmos. Eu, pelo menos, saí totalmente modificado após o bate-papo. Confira:
- No programa Na Moral, você revelou ter levado cinco décadas para entender e assumir a condição de pessoa transgênera. Isso quer dizer que nesses 50 anos suas questões de identidade ficaram em suspenso, sem se manifestar em momento algum?
Não levei cinco décadas para me descobrir, mas para me libertar da fortíssima repressão a que fui submetida desde a infância. Foram cinquenta anos para reunir os meios de me expressar com dignidade, sem medo, sem culpa e tendo orgulho de ser a pessoa que eu sou.  Aos três anos, já havia percebido que era diferente do rebanho . Eles queriam que eu brincasse com bola e caminhãozinho, mas eu queria mesmo era brincar de boneca, brincar de casinha. Apesar de quase iletrada, a única pessoa que compreendeu e respeitou o meu desejo foi minha avó materna. Contra a vontade de todos, ela me deu uma boneca, e com isso arranjou uma boa briga com meus pais.
Depois, o processo que vivi foi de muita repressão , mas é importante ressaltar que não foi uma repressão violenta ou sacana. Toda vez que meu pai me apanhava ou era informado pela minha mãe que eu tinha repetido uma cena de travestismo, ele não me batia, mas conversava. Através de longas preleções morais, tentava mostrar que o que eu estava fazendo não era adequado para um menino e que eu sofreria muito ao longo da vida se eu não me corrigisse, de modo a fazer o que a sociedade espera de um verdadeiro homem.  Não era um discurso mau. Era como ele via as coisas e ele não estava nem um pouco errado. A sociedade é cruel com quem transgride seus rótulos de gênero.
O resultado da bondosa “ditadura moral” do meu pai foi que fazer de mim o meu próprio ditador, não só me impedindo e sabotando meus esforços para me assumir, como permanentemente me policiando, nos mínimos detalhes de conduta, para que ninguém percebesse que eu era uma pessoa diferente. Porém,  mesmo com tanta repressão e auto-repressão meus conflitos de gênero não desapareceram. Ao contrário, continuaram me aterrorizando esse tempo todo. E não pense você que uma pessoa transgênera “armarizada” sofre menos do que uma pessoa transgênera assumida. A dor é a mesma. Só muda a modalidade do sofrimento enfrentado, ou seja, o sofrimento de ficar no armário ou o sofrimento de sair dele. Não acho que eu tenha sido covarde por só conseguir me expressar muito mais tarde em minha vida. Eu só fiz aquilo que eu dei conta, na hora que eu dei conta.

- Além da questão transgênero, também existe o fato de você gostar de mulheres... Isso te livra de algum preconceito?
Sempre fui heterossexual. Além de querer ser mulher, sempre desejei as mulheres. Mas não acho que por causa disso eu esteja menos sujeita aos preconceitos. Na verdade, além de ser considerada “transgressora de gênero” pela sociedade, ainda sofro muita discriminação dentro do próprio meio transgênero, justamente em virtude da minha orientação heterossexual. Um dos fundamentos dessa nossa sociedade heteronormativa é a vinculação do sexo ao gênero e à orientação sexual. A regra é: "se você é homem, é obrigado a sentir desejo por mulher. Se você é um homem que quer ser mulher, tem que querer se relacionar com homens".  Evidentemente, esse não é o meu caso, como não é assim que as coisas funcionam na vida real: - há mulheres que gostam de mulheres e homens que gostam de homens.  Por que não haveria mulheres transgêneras que gostam de mulheres? 
- Você diz que os rótulos de identidade atrapalham a vida das pessoas. É possível pensar em um mundo sem eles?
O rótulo tende a se agarrar, a ficar colado para sempre na testa das pessoas, fazendo com que elas terminem sendo o próprio rótulo que as identifica, acabem se transformando no personagem que representam, como na peça de Pirandello, “Seis personagens à procura de um autor”. Quando se trata de gênero, então, essa é uma verdade incontestável. Em 1949, na sua obra “O segundo sexo”, Simone de Beauvoir [escritora, filósofa e feminista francesa] afirmou que "ninguém nasce mulher: - aprende a ser". Por extensão, ninguém nasce homem, também aprende a ser. Ela estava querendo dizer que  a pessoa nasce como um organismo biológico sexuado (macho ou fêmea) e que é mediante a um aprendizado intenso, permanente e contínuo que esse organismo adquire tanto um “corpo” quanto um “gênero”.
Quando o bebê nasce, o médico ou a parteira olham para o meio das suas pernas e, se ele tem pinto, imediatamente dão-lhe um rótulo que vai valer para a vida inteira: - "é homem". E esse não é um rótulo qualquer, que você pode remover facilmente ou a qualquer momento: - trata-se do seu próprio destino neste mundo, destino que já está construído muito antes de a gente chegar a esse mundo. O bebê “homem” vai ganhar um nome masculino, quartinho azul, brinquedo do Batman e uma trajetória de vida completamente pré-definida por rígidos códigos de conduta sociopolíticos e culturais.
- Você quer dizer que o rótulo de identidade funciona como uma espécie de freio para a inesgotável criatividade de nós, seres humanos?
Exatamente. Os rótulos limitam incrivelmente as possibilidades de uma pessoa ser e expressar-se nesse mundo, além de funcionarem como uma “camisa de força” dos nossos desejos.  Apesar de eu ter nascido macho, ou seja, com um pênis, eu não estava interessada em receber treinamento para ser homem. Mas, ao mesmo tempo, eu não poderia me candidatar a receber treinamento para me tornar mulher, já que eu não tinha nascido fêmea, ou seja, com uma vagina.  É grotesco pensar que a sociedade, baseada com num simples órgão genital, determina toda a trajetória de vida  de uma pessoa nesse planeta, definindo em detalhes o que você pode ou não fazer.Mas como a parte não define o todo, o pênis ou a vagina também não representam um destino inexorável. 
E nós, pessoas transgêneras, demonstramos através da nossa própria existência, que há muitas outras possibilidades para os seres humanos além do mixado binário masculino-feminino. Somos a prova viva de que é totalmente falsa a relação direta entre sexo biológico, gênero e orientação sexual. Que não se trata de uma relação natural, determinada pela natureza, mas de uma norma de conduta que nos foi arbitrariamente imposta pela sociedade heteronormativa. Nossas vidas transgêneras anunciam e denunciam permanentemente a existência de infinitas outras combinações possíveis entre esses elementos.  

- De alguma maneira homens ou mulheres cisgêneros também sofrem com questões de identidade de gênero?
Certamente que sim. Ninguém escapa de ser vítima das identidades de gênero. O “terrorismo de gênero” nos persegue o tempo todo, sejamos homens, mulheres, transexuais, travestis, crossdressers, drag-queens, andróginos e o escambau. Tanto pessoas transgêneras quanto cisgêneras são alvo do controle social exercido através dos rótulos de gênero.  Há uma permanente vigilância para que você não saia dos limites da identidade em que foi classificada ao nascer. Como essa vigilância é exercida da forma mais sutil e “natural” possível, a maioria não se dá conta de que está sendo vigiada e, consequentemente, aterrorizada, para que se mantenha dentro das normas sociais de conduta de gênero. 
Para um homem que vai urinar no mictório coletivo de um banheiro público, por exemplo, surge sempre a pergunta: "será que meu pinto é do tamanho adequado?". Isso é dramático desde os tempos da escola! E eu pergunto: para quê isso? O quê o tamanho do pinto acrescenta na construção do sujeito? É um controle social que não serve para nada a não ser para atormentar as pessoas e mantê-las “reféns” da identidade de gênero que receberam ao nascer.  Atributos de gênero são construções sociais, não são determinações biológicas. 
A natureza não tem nada a ver com essa história de que mulher tem que ser suave, tem que ser terna, tem que cuidar, tem que se produzir, se maquiar... Não se trata de determinação genética, mas de contingências históricas. Em outras palavras, ninguém é homem ou mulher porque a natureza fez assim, mas porque, desde que nasceram, foram – e continuam sendo ao longo de toda a vida – duramente “desaconselhados” e reprimidos a fim de que se comportem de acordo com os códigos de conduta de gênero que a sociedade criou respectivamente para o homem e para a mulher. Identidade de gênero é um atraso, os talentos humanos não estão veiculados aos rótulos...
- Certa vez, entrevistei uma cientista social que diz que as identidades são importantes para nos dizer o lugar que ocupamos no mundo pois, se não conseguimos colocar em palavras aquilo que somos, a nossa própria existência estaria colocada em cheque. O que você diz sobre isso?
Estaria mentindo se dissesse que as identidades não são importantes, mas estaria mentindo igualmente se dissesse que são.  Em princípio os rótulos têm a função de identificar pessoas e coisas e desse ponto de vista são extremamente úteis. “Um mal necessário”, como os chamou Judith Butler, uma das maiores críticas das identidades de gênero. Imagine você dentro de um supermercado onde os produtos não trazem nenhum rótulo ou procurando por um dentista num edifício onde não há placas de identificação nas portas das salas. Mas o rótulo que diferencia é também fonte para a criação de sérias desigualdades entre as pessoas.  Onde existem rótulos, sempre haverá a possibilidade de comparação, de criação de “hierarquias” e de sistemas de dominação. Portanto, a identidade “desnecessária” é a identidade que serve de motor para a criação e manutenção de desigualdades entre as pessoas. 
O fato de ser “mulher” não pode implicar de maneira nenhuma em salários mais baixos do que os que são pagos aos homens, assim como o fato de ser homem não pode servir de base para a prática do estupro, em nome de um suposto “desejo da natureza” pela procriação. Enfim, enquanto as identidades servem para informar qual é o nosso “lugar de fala” nesse mundo, elas são muito bem vindas. Enquanto as identidades são um campo confortável para a expressão de cada pessoa como ser humano neste mundo, elas são muito bem vindas. Eu adoro me apresentar socialmente como mulher; é a persona que mais diz a respeito da pessoa que eu sinto ser. O problema é quando as identidades se tornam base para a produção e manutenção de desigualdades, de hierarquias, de privilégios. Nesse caso elas são totalmente indesejáveis, totalmente mal vindas, inimigas dos direitos humanos que devem ser fortemente repelidas e combatidas.

- Sendo uma pessoa que critica duramente as identidades, como é que você equacionou a questão de identidade feminina e o exercício de papeis masculinos em sua própria vida?
Durante muito tempo em minha vida, considerei que ser mulher, ser marido, ser pai e ser avô eram coisas totalmente incompatíveis. De acordo valores de uma sociedade patriarcal-machista-heteronormativa-careta, para exercer minha identidade feminina eu teria que abrir mão do papel de marido, de pai e de avô. Esse era o núcleo central de todos os meus conflitos e do sofrimento existencial que vivi até me dar conta de que era possível, sim, conciliar todas essas manifestações, que eram afinal manifestações do meu único ser. Mas foi uma luta árdua eu conseguir fazer minha identidade feminina dialogar livremente, sem medo e sem culpa, com os papeis masculinos que livremente assumi ao longo da vida. A vantagem é que, sem presunção nenhuma, sempre procurei ser um ótimo marido, um ótimo pai e um ótimo avô . Adoro minha família e não sei nem se daria conta de continuar vivendo se, para viver a minha identidade feminina, eu tivesse que abrir dela.
- Como a família apresentou a sua figura para os seus netos, por exemplo? Eles te chamam de “vovó” ou de “vovô”?

Me chamam de vovô, claro! Eu não sou a vovó deles; eu sou o vovô! Outro dia mesmo, no supermercado, meu netinho de 3 anos pegou um kinder ovo e pediu: "compra para mim, vovô?". A moça do caixa corrigiu: "É vovó...". E ele insistiu: "Vovó nada, é meu avô, viu!". Para ela – como para a galera em geral e como foi para mim mesma, durante tanto tempo –  é uma contradição uma senhora ser avô.  Mas ela ouviu de uma criança que eu era o avô dela, um papel tradicionalmente masculino. Eu acho essa quebra de rótulos genial [risos]. Mas se você perguntar a ele: “seu avô é menino ou menina?” Ele responde no ato: “Menina!”. 
Como meus netos ainda não foram socializados eles entendem intuitivamente que identidade de gênero pode muito bem ser uma coisa e papeis sociais, outra, e que uma coisa não conflita com a outra. Fico pensando que a escola, em nome da “educação”, vai acabar deformando essa visão tão pura e objetiva que meu neto tem da realidade. Com certeza, um bando de gente preconceituosa e arrogante vai fazer de tudo para lhe empurrar normas de conduta de gênero “goela abaixo”, a fim de fazer dele um adulto bobo, travado e preconceituoso. Bobagens do tipo: "Você tem um pinto/ você é homem / só homens podem ser avôs, etc, etc" que só servem para promover o terrorismo de gênero a que já me referi.
- Embora não goste de rótulos, você certamente deve ter procurado algum grupo com o qual se identificou. Como foi essa trajetória de se sujeitar a um grupo e tornar-se sujeito?
Minha trajetória sempre foi muito solitária, única, e eu diria até muito especial. Nunca gostei de futebol, que é o que os meninos são estimulados a fazer em suas horas vagas e quando me vi impedida de dançar balé, que era uma coisa que me atraía muito e que ainda hoje é considerada uma atividade tipicamente feminina, restou-me estudar, ler, tentar compreender o mundo, as pessoas... A maior parte da minha vida eu tenho sido como os judeus foram, ao longo da história. Eles se tornaram filósofos e críticos porque eram marginalizados e excluídos da sociedade. Então, tinham oportunidade de examinar as coisas de fora, exercendo o seu juízo crítico com total independência e rigor. 
Eu nunca me vinculei a nenhum grupo específico. No início dos anos 2000, filiei-me a um grupo virtual que tinha sido recém criado aqui no Brasil e que foi a porta de saída do armário para a maioria das pessoas transgêneras de classe média/média alta. Mas eu acabei saindo do clube, pois não encontrei muito respaldo ali, nem para o meu perfil de pessoa transgênera, nem para as ideias que eu defendo a respeito de sexo, gênero e orientação sexual. Pra falar a verdade, sempre tive muita dificuldade em estabelecer amizades duradouras, principalmente com homens. Com pouquíssimas exceções, meu círculo de amizades sempre foi formado quase que inteiramente por mulheres.  
Ao mesmo tempo, em termos de aparência pessoal,  os outros sempre me viram como uma pessoa ambígua, meio andrógina e muito, muito, inconclusiva. Apesar de não ter sido uma criança efeminada, talvez pela excessiva repressão a que fui submetida desde cedo, nunca precisei fazer força para ter cara de menina, pois eu já nasci com cara de menina. Se eu tivesse que fazer força, era para parecer homem – e como fiz força pra isso, quase não tendo pelos e sem ter “pomo de adão”. Minhas namoradas gostavam de mim muito mais como amigo, pois eu não correspondia ao modelo de homem que elas queriam, apesar de eu ser heterossexual e amar tanto as mulheres ao ponto de querer ser uma. 
Quando o Bial perguntou ao meu filho [Rafael] "Como é ter um pai assim?", ele respondeu "Normal, ele sempre foi assim. Quando eu era criança, me perguntavam se o meu pai era viado". Com a cabeça boa que ele sempre teve, resolveu a questão super-bem, me compreendendo e aceitando como um viado que não tinha orientação homossexual, mas cujo comportamento era muito semelhante ao de pessoas que carregam o rótulo de homossexual. A resposta dele não foi ao ar, acho que por falta de tempo do programa. 

- Como foi revelar-se trans para sua mulher e sua família? Ela se espantou com as suas transformações?
Minha mulher e meus filhos são pessoas incríveis e eu não queria que nenhum deles sofresse por minha causa. Por isso foi um momento de muito desespero na minha vida. De um lado, eu não queria envolver ninguém da minha família numa questão que eu julgava ser só minha. De outro, eu não queria perder nem a relação com a minha mulher, nem a família que nós duas formamos com tanto amor e dedicação. Por isso, no início dos anos 2000, quando vi que me assumir trans tinha se tornado uma questão de vida ou morte, a primeira coisa que fiz foi sair de casa. Aí foi a vez da minha mulher desesperar-se. Ela me telefonava, implorando que eu lhe contasse o que estava acontecendo. Eu me silenciava, me recusando a dizer, com medo do que veria pela frente.
Até que decidi conversar com ela: 'Eu sempre quis ser mulher, gosto de me vestir como mulher e gosto de mulher e isso tudo sempre foi muito complicado em minha vida”. Ela virou pra mim com muita delicadeza: “Ah, mas é só isso?”. Mas é claro que naquela hora ela não percebeu, nem poderia ter percebido, toda a extensão do meu conflito e suas repercussões, na vida familiar, social, no trabalho, na relação com os nossos filhos, com o trabalho, com nossos amigos... Hoje eu sei que era muita tolice e muito egoísmo da minha parte eu imaginar que a minha questão de gênero poderia ser só minha: ela era uma questão familiar. E é como família que nós temos enfrentado e até hoje superado todos os entraves sociais que se colocaram diante de nós, dificultando a nossa em comum mas, ao mesmo tempo, fortalecendo cada vez mais os nossos laços, na medida em que nos convidam – nos obrigam - a lutar para permanecer juntas.
- Li em sua página que vocês quase se separaram... Foi por conta da sua mudança? Deve ser conflitante em um primeiro momento ser "hetero" e ter um marido "mulher"...
A gente chegou a se separar por uns dias no final do ano passado e... Foi terrível! O peso das pressões sociais e os compromissos de vida quase conseguiram nos afastar uma da outra. Foi barra! Mas a gente conseguiu continuar juntas e ainda mais fortalecidas. Eu sempre soube que jamais teria paz de espírito e conforto psíquico se não assumisse viver integralmente a minha condição de pessoa transgênera. Mas o maior de todos os meus temores era imaginar que isso me impossibilitaria de continuar representando o papel de marido. Esse era um bloqueio que me deixava louco, pois eu  não queria abrir mão de uma relação belíssima, riquíssima, com essa mulher com quem eu vivo há 37 anos e que me ensinou muito do que eu sou... [Respira e se emociona].
E aí está certamente a maior de todas as desconstruções que tive que promover em minha própria vida: assumir-me como mulher trans e continuar a ser o marido da minha mulher. Quando eu me assumi, a reação veio da sociedade: "Mas como vocês continuam juntos? E dormem na mesma cama?". "Não, não pode!". Foi uma luta enorme, um teste de sobrevivência do amor entre duas pessoas, até a gente descobrir que podia, sim, e que se danasse quem achava que não pode. Tivemos que crescer muito, como nunca tínhamos feito em toda a nossa vida em comum, até compreender que somos gente e que nos amamos como pessoas - não como “identidades de gênero” ou como construções socioculturais de marido e mulher. Somos gente, pessoas de carne e osso, que sentem, sofrem, riem e que desejam simplesmente continuar juntas nessa caminhada. Pouco nos importa o rótulo que a sociedade nos deu. Gostamos uma da outra, da mesma forma intensa que sempre gostamos e pouco nos importa se cada uma de nós for homem ou mulher.  
Mas hoje ela percebe que eu continuo sendo a mesma pessoa, que a Letícia é um “upgrade” do Geraldo.

- Você diz que luta por direitos e não por identidades de gênero. Por que então mudar o nome, as roupas, o cabelo, o discurso? Isso não é uma forma de reafirmação de gênero?
Porque eu tenho imaginação.  Já viu esses meninos que praticam RPG, cosplay e crossplay, que se vestem imitando personagens de filmes, de mangás...? É mais ou menos assim que vejo a coisa. Adoro ser uma personagem feminina! O desejo de viver como uma mulher surgiu quando me mostraram o que era ser feminina, me dizendo ao mesmo tempo que eu não poderia ser, exatamente por causa da identidade de gênero – homem – que me deram ao nascer e que também me disseram ser “imexível”, já que estava vinculada ao meu sexo biológico – macho. Acontece que eu podia sim! Bastava eu detonar com essa coisa de identidade e me tornar o personagem da minha preferência.É assim que hoje me tornei uma mulher muito legal para a minha idade, certo? 
Mas eu só fui me dar conta de que precisava detonar com a identidade de gênero, totalmente castradora da minha criatividade, quando tive um enfarto, cinco décadas depois de ter descoberto a minha predileção por personagens femininas. A questão é que não precisamos de gênero para nos identificar - e ser – uma personagem. E se nos faltar imaginação, é só pegar, por exemplo, uma peça qualquer de Shakespeare ou uma revista de mangás. Há milhões de personagens a espera de alguém que queira representa-las.  A personagem é inteiramente lúdica, totalmente prazerosa, intensa, viva e verdadeira. Ao contrário, a identidade de gênero – lembrando que só existem duas: masculino e feminino ou homem e mulher – é uma construção sociocultural morta, pronta e acabada, à qual cada pessoa deve se ajustar em função do seu órgão genital. 
Você vive uma personagem por escolha própria. Ao contrário, a identidade de gênero é algo que lhe é imposto; uma carga cultural da qual ninguém pode se omitir. A personagem é uma plataforma que nos permite criar e variar a representação o tanto quanto a gente queira; a identidade de gênero é uma lista de atributos e papeis que a sociedade nos impõe a fim de sermos reconhecidos nessa identidade. Enfim, enquanto a personagem liberta, a identidade prende e neurotiza cada vez mais.
- O que acha dos conceitos e das regras que definem o que é ser crossdresser, travesti, transexual...?
Uma grande tolice, se quer saber. São variações em torno do mesmíssimo tema. A matriz de todas essas identidades é absolutamente a mesma, ou seja, a discordância e o desvio da norma binária de gênero: masculino e feminino. A única diferença é a intensidade da discordância e a profundidade do desvio. Não é a toa que  muitas transexuais se consideram no topo da pirâmide transgênera  afirmando, com certa arrogância e desdém, que travestis são transexuais que ainda não tiveram a coragem de se operar e que crossdressers não passam de homens vestidos de mulher... 
Também é curioso o fato de que a maioria dos membros desses três grupos não se reconheçam como transgêneros, termo criado para abrigar todas as identidades gênero-divergentes. Aliás, internacionalmente, o “t” da sigla LGBT representa todas as categorias transgêneras, exceto no Brasil, onde muitas vezes a sigla é apresentada com três “tês”: LGBTTT, travestis, transexuais e Transgêneros... Só não pergunte o que são Transgêneros: dificilmente alguém vai lhe responder de maneira convincente... Como também não é nem um pouco convincente as definições do que é transexual, travesti ou crossdresser.
Na maioria dos casos, são verdadeiras ficções, construídas muito mais para dar sustentação a alguma ONG, a algum programa do governo ou a ambos... Eu já vi coisas escritas do seguinte teor: “transexual é uma mulher presa num corpo de homem (ou vice-versa, no caso dos transhomens)” ou “travestis não desejam passar por cirurgia de transgenitalização” ou “crossdressers são homens que se vestem de mulher como hobby de fim-de-semana”... Sem falar nos disparates que muitas ONGs e Grupos de Apoio são capazes de listar como “atributos” próprios da identidade de gênero que representam e que devem ser atendidos pelos seus associados a fim de que sejam reconhecidos como detentores de tal identidade. Como afirmou Judith Butler na sua obra “Problema de Gênero”, as entidades representativas de categorias de gênero acabam produzindo as identidades que se propõem representar...
Quando Diana Maria criou o BCC na Internet, no final dos anos noventa, foi a tábua de salvação da população transgênera de classe média/alta no Brasil, até então sem nenhum canal de expressão ou comunicação pública. Mas ela se baseou no modelo norte-americano do Tri-Ess, copiando de lá as mesmas regras e idiossincrasias - somos héteros, nos vestimos de mulher por puro prazer... Ela sabia que tudo isso era história da carochinha, mas até hoje prevalece esse discurso inocente, inconsequente e totalmente alienado. Atualmente,  de 10 crossdressers históricos (eu inclusive...), 11 estão vivendo como mulher em tempo integral mais da metade passou por cirurgia de reaparelhamento genital... 
- Existe também o peso do que cada palavra significa? 
Dificilmente iremos entender a falsidade e a falência conceitual das categorias transgêneras no Brasil sem fazermos uma leitura incluindo a varável classe sócio-econômica. Em outras palavras, as grandes diferenças entre as categorias transgêneras no Brasil sofrem um importante viés de natureza sócio-econômica, como de resto tudo o mais no nosso país. Travesti é sinônimo, sim, de prostituição, de rua, de pobreza, Madame Satã... Transexual carrega o fortíssimo perfil de patologia a ser urgentemente tratada. E crossdresser é homem de classe média/alta cujos vínculos e compromissos familiares, profissionais, políticos e econômicos não recomendam uma exposição pública aberta, considerando a natureza patriarcal machista da nação brasileira.
Por isso, muitas "travestis", quando melhoram um pouco de vida, começam a se identificar como "transexuais". A Roberta Close foi assim: se apresentava como travesti, fazia programa, foi assim que ficou conhecida. Depois que ficou famosa passou a apresentar-se como transexual, assumindo a patologia. Toda diferenciação produz desigualdade. Como pessoas transgêneras, em vez de pensarmos em defender rótulos de identidade, precisamos pensar em obter a nossa plena inserção na sociedade, em resgatar os nossos direitos de cidadania.
- Mas existem diferentes maneiras de se enxergar, não? Tem transexual que se considera "mulher de verdade", tem travesti que se diz "dois em um", tem até quem queira apagar inteiramente o seu passado depois da cirurgia de redesignação sexual...
A respeitadíssima APA (American Psychological Association) define identidade de gênero como sendo o senso interno da pessoa quanto ao seu pertencimento ao gênero masculino ou ao gênero feminino. Trata-se, assim, de um conceito altamente subjetivo: apenas a própria pessoa pode dizer se pertence ou não a esse ou àquele gênero. O problema é que, na contramão dessa definição, a sociedade se reserva o direito de definir o gênero de cada pessoa a partir da genitália exibida pelo bebê ao nascer. E esse é apenas um dos muitos problemas que cercam a questão da identidade de gênero. Há, por exemplo, o caso de pessoas que se atribuem um determinado gênero em estado de delírio e, portanto, não podem ser levadas a sério. Certas psicoses também produzem falsas identidades de gênero, assim como personalidades cindidas.  
Acho, por exemplo, muito psicótico o discurso: 'sou uma mulher presa em um corpo de homem'.  Primeiro, a pessoa não nasce mulher, torna-se mulher, como já disse antes. Ser mulher é muito mais uma questão sociopolítico-cultural do que uma determinação biológica. Segundo, ser fêmea biologicamente falando é menstruar, é poder gerar filhos... Todos sabem que a trajetória de uma pessoa não pode ser apagada com uma cirurgia de reaparelhamento genital. Como psicanalista, digo que a história de vida de uma pessoa é a base de construção do sujeito e negar a própria história é um claro sinal de psicose. Rejeitar o passado ou é doença mental da pesada ou então é mau-caratismo. Prefiro acreditar que é doença...  
O território do seu corpo é seu por definição e você pode brincar com ele como quiser. Se acha que mudar o nome dos documentos vai te deixar feliz, mude. Se quer fazer a cirurgia, faça... Mas não é legal negar a própria história. Afinal, por que não assumir a identidade transgênera? Será que a identidade trans serve apenas como ponte para mudar o corpo de modo a tornar-se uma pessoa perfeitamente enquadrada em um dos dois gêneros oficiais? Ou bem a pessoa é transgênera ou está mais para uma “cisgênera enrustida”, como escrevi recentemente em um dos editoriais do meu site leticialanz.org. Será que as pessoas não vêm que, ao tentar desesperadamente tornar-se indivíduos do outro sexo, estão apenas confirmando e contribuindo para aumentar ainda mais a força do sistema de gêneros que é, paradoxalmente, a fonte de todos os seus tormentos? 
Eu quero ser mulher, sim, mas fora de um sistema de gêneros que é basicamente misógino, que acua e violenta as mulheres, que é patriarcal-machista e heteronormativo. Mas, infelizmente, muitas pessoas transgêneras afirmam que seu desejo é “lavar a cueca” dos seus bofes... Num claro retrocesso à igualdade de direitos da mulher na sociedade, conquistada a tão duras penas e que ainda nem está consolidada. Esta é uma atitude totalmente machista e cisgênera. Não tem nada de transgênera e muito menos de libertária. 

- O que você está querendo dizer é "Parem com esse discurso de vitimização”?
Uma das maiores pragas no meio transgênero é o discurso de vitimização, que eu apelidei de “coitadismo de mim”. Não é fácil ser uma pessoa diferente em uma sociedade onde todo mundo tem obsessão por ser igual. Mas transformar as nossas dificuldades de aceitação pela sociedade em um processo de auto-piedade neurótica é uma péssima estratégia de inserção social. O discurso de que eu sou excluída, preterida, marginalizada, de que me faltam oportunidades de trabalho, de realização profissional e até de realização afetiva só reforça o modelo binário de gênero que foi imposto e com o qual eu tenho profundas divergências. Na verdade, muita gente se regozija ao ouvir o rosário de penas de uma pessoa trans: “É merecido passar por isso; foi você que procurou com suas próprias mãos! Pare com isso e você não será mais molestada”. 
Para a nossa sociedade heteronormativa-cisgênera, "se você foi molestada, você é quem provocou".   A vítima é transformada no seu próprio algoz; descaradamente responsabilizada pela violência que sofreu.  Penso que é necessário mostrar à sociedade que existe uma outra face das pessoas transgêneras. Que somos capazes de viver uma vida produtiva, que somos capazes de realizações, que somos pessoas inteligentes e competentes.  Porque pessoas transgêneras que deram certo não são mais massageadas pelo próprio meio trans? Porque elas recebem menos cobertura do que os terríveis assassinatos que acontecem todos os dias no nosso meio e que, naturalmente, precisam ser divulgados e denunciados? Mas, da mesma forma, precisamos botar a boca no trombone e mostrar que nós podemos ser “incensadas”, em vez de ser “assassinadas”. 
Muitas vezes o preconceito está no nosso próprio olho. Quase sempre a dificuldade que enfrentamos no mundo exterior tem raízes dentro da gente e este é um ponto que precisamos e devemos trabalhar. Até onde a repulsa vem da comunidade e não de nós mesmas? Até que ponto a gente não arma a cena do crime e vive esperando o momento em que também seremos vítimas de rejeição, de exclusão e de maus-tratos? 
- Mas você não acha que é fácil dizer isso sendo uma pessoa que já tem uma base financeira estável, uma família que te apoia, uma profissão autônoma e, de certa maneira, vive uma vida totalmente independente da sociedade, muito diferente de uma pessoa trans que tem 14 anos, que não tem emprego, que foi expulsa de casa, que sofre bullying na escola, que precisa se prostituir para sobreviver...?
Você está inteiramente certo. Mas também está inteiramente errado. Onde você está certo: a guria de 14 anos precisa imensamente de ser acolhida e protegida pois, evidentemente, está vivendo numa situação-limite, de risco permanente. Casos como o dela precisam ser  levantados e exaustivamente divulgados. Onde você está errado:  pessoas transgêneras bem sucedidas como eu, ou até muito mais do que eu, costumam desfiar rosários e rosários de tormentos e aflições, em vez de expor publicamente os seus êxitos pessoais, mostrando que pessoas trans podem dar certo como qualquer pessoa cisgênera bem sucedida. 
Será que essas pessoas transgêneras bem-sucedidas não compreendem que, ao vender uma imagem de sofredoras e perdedoras, em vez de lutadoras e vencedoras, acabam contribuindo para piorar ainda mais a vida da pobre guria trans de 14 anos? Afinal de contas, pra que a sociedade deve proteger e dar apoio a uma menina trans de periferia se até uma trans de classe média/alta diz que tudo pra ela deu errado na vida? Numa sociedade como a nossa, que só valoriza quem tem dinheiro e faz sucesso, e que despreza a choradeira dos perdedores, é uma péssima estratégia tentar afirmar a identidade trans a partir do que ela tem de pior, de mais sofrido, de mais sombrio, de mais doentio.
Pode ser, também, que essa necessidade mórbida das pessoas trans reforçarem suas tristezas, fracassos e perdas nos seus discursos, em vez de falarem das suas vitórias, alegrias e êxitos,  resulte da culpa que sentem em sentir prazer. Um prazer em geral que está muito além e muito acima das possibilidades de sentir prazer a que a média das pessoas têm acesso.    
Realizar-se como uma pessoa trans produz um grau de prazer muito grande. As travestis, por sua vez, são capazes de alcançar elevadíssimos graus de prazer sexual. Então o discurso de coitadinho pode ser muito bem uma forma de se penitenciar pela culpa, porque vivemos numa sociedade onde somos educadas a nos sentir envergonhadas e culpadas todas as vezes que sentimos prazer. É a nossa criação cristã, que desqualifica, desvaloriza e até pune as manifestações de prazer, particularmente de prazer sexual. Mas o prazer é que tem que ser valorizado! Nunca o sofrimento, a vergonha e dor.

Respeito à identidade de gênero e o uso de artigo feminino para uma travesti e transexual são importantes?
“É muito importante!”, responderia a maioria das pessoas trans, numa cantilena ensaiada, muito comum no nosso meio trans. Já vi transgênero sair para as vias de fato porque não usaram corretamente o artigo ao dirigir-se a ela. Provavelmente disseram “o” travesti  ou “o” transexual e isso, para muitas, representa uma agressão da pior espécie.  Eu sinceramente acho uma perda de tempo brigar pelo uso correto do artigo ou pronome. Acho que é gastar a pouca munição que temos num alvo totalmente equivocado. Reforçar o emprego “correto” do artigo e do pronome para nominar identidades trans implica num indesejável reforço do modelo binário de gênero. 
Ao contrário, o uso incorreto do artigo e do pronome obriga a sociedade a pensar fora da caixinha do gênero. Como eu já disse, em vez de ser chamada de vovó, por ser uma mulher, eu quero mais é que meu neto me chame de vovô, a fim de marcar ainda mais uma suposta contradição entre a minha identidade de gênero – feminina – e o papel de gênero – masculino – que estou vivendo em perfeita harmonia. Isso sim, contribui para desconstruir gênero, para detonar com a ditadura do binário de gênero masculino-feminino.  
Classicamente, as travestis se posicionam fora binário oficial, afirmando que não são “nem homem, nem mulher, mas travesti”. Já as transexuais têm em geral um discurso de reconhecimento e aprovação do binário de gêneros, ao afirmar que são “verdadeiramente mulheres”. Eu pouco me importo com o jeito que alguém vai me chamar ou em que categoria de gênero vai me posicionar. O importante é estar sendo a pessoa que eu sou; isso é a única coisa que para mim realmente conta. Quanto ao modo como a pessoa me chama, digo sempre que eu me chamo de eu e que os outros podem me chamar como acharem melhor. Pra mim, você pode me chamar de Geraldo no seu texto, pode dizer que eu sou marido de uma mulher como pode me chamar de Letícia, uma verdadeira diva...[risos] Na verdade, Letícia é o nome que eu mais gosto, mas me chamar de Geraldo não vai me fazer menos mulher, menos diva, menos poderosa do que sou. Como me chamar de Letícia não faz de mim uma super-fêmea, porque isso eu já sou [risos]. 
- Você não acha que as pessoas que não respeitam a identidade de gênero estão querendo dizer que aquela trans, na verdade, é um homem?
Se alguém eventualmente me tratar no masculino de forma desrespeitosa ou pejorativa, eu vou mandar ele pra puta que o pariu [risos]. Agora, não é porque alguém me chamou de cachorra que eu vou sair por aí latindo [risos]... Poxa! Só vamos nos sentir mulher se formos tratadas pelo artigo feminino? Se for usado o artigo masculino, vamos nos sentir mal, vamos sapatear, vamos surtar? Eu quero mais é que as pessoas me vejam fora da lógica binária dos gêneros, como alguém que transgrediu as normas de gênero com muita satisfação e prazer. Eu não quero pactuar de maneira nenhuma com esse sistema binário de gêneros, machista, patriarcal, sacana e violento. Não dá para ter controle do que as pessoas pensam de nós; o que você pensa de mim não é da minha conta. 
E se alguém me chamasse de homem vestido de mulher (como alguém já chamou, em off, aqui mesmo, dentro do próprio gueto...), eu diria simplesmente: "Tá vendo? Mesmo sendo homem consigo ser esse show de mulher que você está vendo [risos]". Isso sim, é motivo de glória.
Quando alguém diz que você parece mulher cisgênero, como fica a sua vaidade?
Não vou dizer que não gosto desse elogio. Ele é muito melhor de se ouvir do que um xingamento. Mas pra mim é indiferente. Não vou me modificar em nada em função desse feedback. Estou consciente de quem eu sou e de como eu sou, como conheço muito bem as minhas possibilidades e limitações. Acima de tudo, eu tenho autocrítica. Mas olha, chegar a essa posição levou muuuito tempo [risos].
- Acredita que os gays têm medo das trans?
Não são todos, é claro. Tenho excelentes interlocutores e defensores da causa transgênera entre os gays. Mas há uma parcela grande e muito representativa de gays que não compreendem, não aceitam e repudiam qualquer tipo de expressão transgênera. Essa expressiva parcela de pessoas traduzem a nítida tendência de se buscar, cada vez mais, uma ampla “sanitização” do movimento gay, de modo a livra-lo da praga das “bichas-loucas”, pobres, feias e indiscretas. Nesse processo de “limpeza étnica-socio-polítca-cultural”  as pessoas transgêneras tornam-se, naturalmente , o alvo preferencial da crítica e da exclusão. A coisa é tão séria que muitos gays hoje em dia que, longe de representarem “ameaça às famílias”, deveriam ser aplaudidos de pé pelos fundamentalistas de plantão, como valorosos defensores da moral e dos bons costumes...
De um modo geral, há muita desinformação entre as pessoas G-L-B sobre o que é a condição transgênera. A maioria expressa a mesma opinião da massa mal-informada de que transgênero não passa de viado metido a besta, gente aparecida e “espetaculosa” que compromete a inclusão definitiva dos gays na sociedade heteronormativa.  E o pior é que não vou negar que no próprio meio transgênero também haja uma pá de gente que se veja dessa forma. Mas identidade transgênera é algo inteiramente distinto de orientação homossexual. 
Dados epidemiológicos da Organização Mundial de Saúde, por exemplo, dão conta que a incidência de orientação homossexual na população transgênera tem as mesmas proporções que na população em geral (cisgênera). Ou seja, ser transgênero não implica necessária e automaticamente em possuir orientação homossexual, como é a crença generalizada. A letra “T” está sobrando na sigla LGBT, mesmo porque somente uma parcela dos Transgêneros estaria sendo representada nas demandas L e G.  Aliás, no Brasil, graças à política de captação e esvaziamento dos movimentos sociais, promovida pelo Governo Federal, o movimento LGBT tem sido praticamente um balcão de demandas G - no máximo G-L, inteiramente subordinado e submisso .
Não acho, portanto, que seja só medo: há raiva, há desdém, há menos-valia, há desinteresse, há rejeição, há muita violência simbólica. Ainda mais nesse momento em que assistimos um triste reaquecimento de conservadorismos altamente refratários e reacionários às conquistas dos direitos humanos. Tenho um irmão homossexual que não me aceita, que não gosta de mim e é um dos meus críticos mais mordazes. Entretanto, ele é também uma das pessoas mais enquadradas que conheço. Ele se veste como um macho alfa, comporta-se como tal e, graças à doutrinação da igreja católica, com quem ele mantém fortes vínculos, mantém um discurso de homossexual culpado pela sua própria condição homossexual. Debaixo do sólido rótulo de homossexual conservador, que ele escolheu como forma de abrigo e defesa, eu sei que é muito difícil para ele entender e aceitar a minha liberdade de expressão. Escrevi um livro que será lançado brevemente, assim que aparecer uma editora interessada: “Quem tem medo de Letícia Lanz”, em que faço esse tipo de constatação e denúncia.
Conta um pouco como é o seu dia a dia...
Leio, reflito, escrevo, exponho, polemizo, debato, refuto, revejo, me posiciono politicamente. Essa sempre foi a função de uma intelectual na sociedade.  Mas também sonho, compartilho e me relaciono com todo tipo de pessoas. Adoro conversar, contar casos, conhecer histórias. Acho que também por isso eu me tornei psicanalista: a psicanálise é uma produtora de sentidos, a partir de narrativas de vida, colchas de retalhos pacientemente tecidas a quatro mãos... E sou muito família. Assumo meu papel de marido, pai e avô como se fosse um ritual dedicado ao Universo. E assumo não apenas os filhos que ajudei a parir, mas um monte deles que fui adotando ao longo da vida. Por último, adoro me produzir. Gosto de me sentir bonita, por dentro e por fora, quando me olho no espelho. E sou uma perua assumidérrima. Minha referência é a Hebe Camargo [risos]. Agradeço à Deusa Mãe, todos os dias, por estar viva e atuante, engajada nas lutas do meu tempo e feliz de ser sem medo.  
Diante de toda a nossa conversa e das questões levantadas, qual é o seu maior sonho?

Meu sonho é mudar o mundo. Li em algum lugar que só pessoas muito loucas acham que conseguirão mudar o mundo – e que são elas que realmente conseguem. Sou suficientemente louca para estar nesse empreendimento [risos].  Quando comecei a usar a palavra 'transgênero', há cerca de dez anos, quase fui defenestrada dos meio trans! Ainda hoje sou repudiada por isso.
Mas agora, que a palavra está sendo mais aceita como um termo guarda-chuva, eu já parti para o discurso queer. São lutas muito importantes, de resgaste de direitos, de respeito à construção de si próprio a partir do que cada pessoa pensa e quer de si mesma. De defesa incondicional de toda e qualquer expressão de gênero, de combate ostensivo aos rótulos de identidade, tacanhos, restritivos, castradores, que só servem para produzir desigualdade e violência. De respeito incondicional ao território do corpo, que pode e deve ser explorado e desfrutado de acordo com o livre desejo de expressão de cada individuo, sem nenhuma regulamentação por parte do Estado ou de religiões. 
Meu sonho, enfim, é ver sociedade livre de injustiças e de preconceitos, baseada na lógica elementar da verdade e na lógica, totalmente sem lógica, do amor.

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