Escrito por Neto Lucon
Publicado em sábado, 8 de junho de 2013
Neto Lucon (revista Junior/13)
“No asilo não tem nenhum gay, querido. É só velho, mesmo”. “Não,
não trabalhamos com homossexuais”. “São senhoras muito religiosas, nenhuma lésbica,
muito menos bissexual”. “Se tem algum gay aqui, ninguém nunca falou nada”. “Homossexual?
Não temos, ok? Tchau”.
Foram mais de 100 ligações telefônicas e doze visitas a 40 asilos, casas de
apoio, repouso, albergues e abrigos de São Paulo na busca por um gay idoso,
foco desta reportagem. Apenas um abrigo declarou que um gay morava lá. Outro
disse que um homossexual morador precisou voltar ao armário por sofrer
preconceito de outros moradores.
Muitas atendentes, secretárias e responsáveis por serviços
assistenciais, durante o contato, deram a entender que a procura era avaliada
com desconforto, trote e até chacota. Como se idosos não pudessem ser gays.
Como se gays não ficassem velhos. E como se idosos não sentissem desejo sexual.
Puro preconceito.
AO ARMÁRIO AGAIN
Nascemos, nos descobrimos, vivemos e gozamos da juventude. Corpos rígidos,
olhos atentos, raciocínio rápido e hormônios
a flor da pele. Com o tempo, os braços e pernas tornam-se flácidos, as rugas se
espalham como raízes pelo rosto, as atividades inevitavelmente mudam e a experiência
pode ser interpretada como ponto forte. Não adianta nem tentar escapar: todo
mundo fica velho.
A nova geração é de fato mais assumida e com consciência de
seus direitos, graças ao relaxamento das tensões e respeito das diferenças sexuais,
conquistado ao longo dos anos. Mas por onde andam os homossexuais que se
assumiram há 40, 50, 60 anos?
Uma reportagem do “New York Times”, escrita por Janet Gross e Dan Frosch,
revela que, para alguns deles, o tão perturbador armário volta a ser um dilema
na terceira idade. Dentro de asilos, eles são obrigados a esconder a orientação
sexual por medo da homofobia de seus companheiros de quarto, sala e
fisioterapia.
A experiência de Glória Donadello, 81 anos, que participava do centro de vida
assistida em Santa Fé,
Novo México, diz por si o panorama dos idosos gays. Durante uma reunião, ela se
incomodou com comentários homofóbicos e pediu para seus amigos pararem. “Por
favor, não façam isso, porque sou gay”, disse. Depois da indagação, cheia de
sinceridade, “todos olharam horrorizados”,
relembra ela.
Desde então, Glória não foi mais bem-vinda nas conversas, refeições e caiu em depressão. Por
sorte, conseguiu sobreviver quando se mudou para uma comunidade próxima, que
atendia especialmente gays e lésbicas. “Foi uma questão de vida ou morte”,
dispara.
Outro caso mais trágico, também abordado na reportagem, aconteceu com um senhor
gay de 79 anos, que freqüentava o asilo da Costa Leste estadunidense. Ele foi
transferido de seu andar por conta de protestos de moradores que não aceitavam
sua orientação sexual. Bastante triste com a reação, o senhor não resistiu a
pressão e se enforcou.
No Brasil, a situação não é diferente. Pior: por aqui não
existe nenhum asilo voltado para LGBTs. A coordenadora do Albergue Esperança, Alice
Aparecida de Alencar, reconhece o problema: “Idosos homossexuais sofrem muito
preconceito de outros idosos. É por isso que não se assumem. Quando revelam,
surgem vários problemas”.
Um deles aconteceu com Claudio, homossexual de 66 anos, que não admitia que
fizessem piadas sobre sua sexualidade.
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Reportagem ganhou 4 páginas na revista Junior/13 |
“Quando fazia, ele
pulava, agarrava o órgão sexual de outro morador e não soltava mais. Chegava a
tirar sangue”, conta ela. Problemas relacionados ao banheiro também eram
constantes. “Quando os héteros tomavam banho, ninguém admitia que ele entrasse
no banheiro. Ele ficava bastante nervoso e era aquela confusão”, salienta.
AVERSÃO DE QUEM CUIDA
Ao contrário de Berlim,
Argentina, Lisboa e Boston, não existem serviços voltados a idosos gays
no Brasil. O estilista Ronaldo Ésper, que tem 65 anos, contou que planeja criar
a primeira “casa aberta” para atender esse público. “Não dá para o
homossexual ficar em asilo. Além dele se sentir deslocado, sentir vergonha de
falar que é gay, ele pode movimentar muito o lugar”, defende.
E, diante do crítico quadro, gays idosos assumidos são quase nulos em asilos e
serviços assistenciais. “É tão difícil quanto encontrar orientais que
necessitem desses cuidados”, compara Nanci Paulino Bernardo, gestora do “Pró +
Vida”, instituto que atende senhores de risco e exclusão. “Confesso que nunca
ouvi falar de um gay que estivesse por aqui. Talvez eles vivam no armário pelo
medo de serem tratados com preconceito”, diz.
A educadora social
Amanda de Oliveira Posanello afirma que é mais comum idosos revelarem
tranquilamente a orientação sexual quando conquistam sua aposentadoria e levam
uma vida independente. “É que, daí, eles não têm mais nada a perder, nem a quem
dar explicações. Vivem plenamente uma vida assumida. Mas quando necessitam de
abrigos, eles sentem medo do preconceito até dos funcionários”.
Amanda diz que o receio
dos gays tem fundamento, uma vez que já conheceu enfermeiros que não gostavam
de atender homossexuais idosos. “Muita gente ainda não está preparada. Já
cheguei a trabalhar em um lugar em que enfermeiros e outros profissionais não
aceitavam homossexuais, onde o próprio funcionário alegava que não sabia
lidar. Então, preferiam evitar o contato”, frisa.
A CHACOTA QUE INTIMIDA
Seu Antonio, 65 anos,
integra uma instituição que ampara pessoas sujeitas à vulnerabilidade social. Magro,
pequeno, tímido e de cabelos brancos, ele não gosta de falar que é gay, muito
menos publicamente. Quando foi abordado por mim, ele desconversou
e se retirou. Tanto que um dia após ter sido convidado para participar
desta reportagem, ao contrário de sua rotina, ele saiu do abrigo bem
cedo, mesmo com dificuldades para caminhar, com a finalidade de evitar
novas declarações..
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Funcionários
dizem que no início do atendimento Seu Antônio não era tão fechado
assim. Ao contrário, era considerado alegre e até flertava outros homens
tranquilamente. Foi depois de ouvir constantes piadinhas e ser alvo de comentários homofóbicos de outros morados que ele começou a se entristecer.
“Hoje
ele vive silencioso e prefere a companhia apenas dos funcionários. São
raras as vezes em que ele é visto conversando com outros moradores, a
não ser para serviços. Devido à habilidade de lavar e passar roupas, ele
consegue ter uma renda”, diz um funcionário.
Pela
manhã, Antônio lava e passa as peças. Pela tarde, consegue fazer outro
bico em uma casa de família. “Todo mundo gosta do trabalho dele, que é
uma tarefa feminina, né? Mas ninguém faz mais piadas. Todos sabem de sua
sexualidade, mas ela não é mais motivo de gozação”, diz a educadora
social Amanda.
Mesmo
assim, quando é flagrado olhando para outros homens, seu semblante é
bastante diferente: abaixa a cabeça e se envergonha. Seu passado,
possíveis namoros e casamentos ainda são uma incógnita para todos. Estão
muito bem guardados. Talvez leve consigo para sempre.
MEU NOME É XUXA
O
estereotipo da solidão, armário e tristeza, porém, não é uma regra.
Ernani Pereira Candido ou, como ele prefere ser chamado, Xuxa, é um senhor gay extremamente assumido, aceito e feliz.
Segundo
ele, a convivência com funcionários e moradores do Albergue Boracea e
da Casa Geração, ao lado do Parque da Luz, em São Paulo, é de muita
conversa, cumplicidade e brincadeiras.
Em
uma tarde de quinta-feira, Xuxa me aguardava com seus encantadores
olhos azuis esverdeados. Ao lado de dois amigos, ele participava da
comemoração de aniversário de um garotinho de 10 anos. O clima era de
descontração e brincadeiras: “Não adianta vir com entrevista. Aqui não tem homossexual”,
soltou um morador. Até que Xuxa retrucou: “Não sou homossexual, mesmo,
meu amor. Sou hermafrodita”, arrancando gargalhada de todos.
A
boa convivência com o grupo predominantemente heterossexual é explicada
pela espontaneidade e jogo de cintura de Xuxa. “Sou muito carismático,
brincalhão e procuro conversar com todo mundo - de igual para igual, sem
crise. Por isso nunca tive problemas”, diz.
Comendo
bolo de chocolate e guaraná, ele afirma nunca ter sofrido preconceito
no abrigo e nem na casa de apoio. “Aqui todo mundo é igual. Todos,
inclusive os fundadores e funcionários, sentam no mesmo espaço,
conversam, interagem, sem fazer distinção. Nunca sofri preconceito de
ninguém. E, se sofri, nunca percebi nada”, defendeu.
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Ele
explica sua rotina: “Temos o momento de oração às 8h. Depois, participo
das oficinas que vai até às 16h30. Todos os dias”. Enquanto ele explica
suas atividades, me puxa pelo braço e me apresenta um quadro que
pintou. “É um cometa, cheio de raios de luz. Tem uma estrela na ponta,
olha. E tem o rabo bem luminoso aqui”, descreve orgulhoso pela obra
estar exposta no espaço. .
Xuxa
começa a arrumar seus materiais e diz que não se sente velho, muito
menos acha que já viveu tudo na vida. “Desfruto cada segundo do meu dia,
pois a cada momento algo novo surge. Para mim, cada dia é uma vida diferente.
Hoje estou aqui com você. Amanhã você vai estar com outra pessoa e,
depois, não sabemos. É por isso que devemos viver com intensidade,
aproveitar ao máximo o outro, como se fosse o último momento”.
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Vindo
de uma família circense, Ernani diz que foi criado por outra família,
após a separação dos pais biológicos, aos 4 anos. E diz que sempre teve
medo de assumir a homossexualidade: “Os tempos eram outros e eu amava
muito a minha mãe de criação. Tinha medo de que ela se machucasse por
saber de mim. Até que um dia ela chegou e perguntou. Eu me assumi e,
para minha surpresa, ela disse que me amaria ainda mais, pois eu
precisaria desse amor. Neste dia saiu um peso das minhas costas”,
confessa.
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Em
um período difícil, Xuxa perdeu o pouco que tinha e, sem os pais e
emprego fixo, se viu obrigado ir para as ruas. “Já passei por muita
coisa no passado, experiências que você nem imagina. Já pedi dinheiro,
já comi alimento do lixo, já dormi na rua. O mais difícil deles? Ah, é enfrentar as primeiras fomes, a primeira vez que precisei pedir dinheiro. A primeira vez sempre marca, né, depois você se acostuma”.
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Hoje,
necessitando de serviços assistenciais, ele não reclama da vida que
leva: “Um prato de arroz é um banquete, para mim. Quem passou fome sabe
disso: nem precisa de mistura”, frisa ele, que já se casou com um homem do albergue.
“Conheci um rapaz de olhos negros lindos. Ele vinha sempre bater na
minha perna durante a noite”, conta. “Namoramos, nos casamos e ele foi a
grande paixão da minha vida”, lembra com os olhos marejados. Ele evita
falar sobre o término.
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Enquanto
volta ao abrigo Boracea, na Barra Funda, o senhor diz que nunca pensou
em voltar para o armário, como outros idosos homossexuais, os quais me
referi no início da reportagem: “Esconder de novo? Para quê? Não
tenho vergonha de nada, nada. Temos que ser o que somos, independente da
idade e do lugar. Minha vida sexual é muito ativa, te garanto, e tenho
muito orgulho da minha história. Jamais mudaria meu jeito por alguém”,
defendeu.
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"Mas
não quero mais relembrar o passado. A vida passa, os ponteiros não
param e eu ainda tenho muito o que viver, a cada dia, entendeu?”.
Entendi.
// Que todos tenham um pouquinho da consciência e do jogo de cintura de
Xuxa, mas que principalmente tenham o direito de envelhecer e gozar de
sua sexualidade com liberdade, dignidade e respeito.
Fonte: