A luta pelos ideais causou a violação do corpo e da alma dos militantes políticos contrários ao golpe militar de
1964. Não bastasse o estresse emocional e de resistência, os
perseguidos tinham de lidar com a situação no âmbito familiar, já que
muitos filhos, parentes e cônjuges foram detidos para desestabilizar
emocionalmente os militantes.
Militante da Ação Popular, organização comunista, a psicanalista
Maria Auxiliadora ‘Dodora’ Arantes vivenciou essa experiência. Em 13 de
dezembro de 1968, dia em que passou a vigorar o AI-5 (Ato Institucional
5), ela foi sequestrada pelos militares junto de seus dois filhos
pequenos. Na casa onde morava, numa cidade do interior de Alagoas,
também estavam uma companheira de militância e sua filha, de sete anos.
“Meus filhos, a Priscila e o André, tinham dois e três anos de idade.
Nós ficamos presos quatro meses e meio. Ficamos numa situação de
constrangimento absoluta. Ficamos submetidos à situação de maus tratos e
houve um evento em que éramos mudados de local de prisão a cada
momento, primeiro numa de delegacia de bairro, passando por outros
locais até chegar a uma escola, por exemplo”.
Dodora relata que, durante o cárcere, ela teve uma doença
infectocontagiosa e seus filhos tiveram furúnculos. Assim como o
personagem Guido Orefice vivido por Roberto Benigni, de “A vida é bela” -
que cria um ambiente lúdico dentro de um campo de concentração para
poupar o filho da realidade nazista – a psicanalista fez o que pôde para
proteger as crianças do ambiente de tortura.
“Eu fazia ginástica, joguinho, aulinhas de alfabetização para a filha
da Rosa, que era maior... Como os carcereiros permitiam, eles ficavam o
dia todo brincando. Fiz coisas que qualquer mãe faria para proteger os
filhos de uma situação adversa”.
Segundo ela, seus filhos, que estão na faixa dos 40 anos, pouco se lembram daquela ocasião, “só quando contam para eles”.
“Os presos eram ameaçados pelos ditadores, que diziam que seus filhos
seriam prejudicados. Eu tive um gesto materno, quando a mãe tem de
proteger uma criança, gesto totalmente oposto dos ditadores, que estavam
sequestrando crianças. O que uma criança poderia oferecer de ameaça
para alguém?”
Medo como herança
Um dos casos emblemáticos que veio a conhecimento público recentemente foi o de Carlos Alexandre Azevedo,
filho do jornalista e preso político Dermi Azevedo. Torturado com
apenas 1 ano e oito meses de idade, Carlos cometeu suicídio em fevereiro
deste ano, aos 37 anos. Ele tinha um longo histórico de problemas de
sociabilidade e fobias.
Ao analisar a experiência de Carlos, o psicanalista Moises Rodrigues
da Silva Junior, do Instituto Projetos Terapêuticos, afirma que uma
violência como a sofrida pelas vítimas da ditadura pode ter
consequências ao longo da vida - mesmo que a violação tenha ocorrido nos
primeiros anos de vida.
“A tortura teve um papel muito grande nessa questão do medo. E isso
fica na memória do corpo, vem à tona em algum momento. Alguém com dentes
quebrados com um ano e meio, carregando, já maior, um problema no
maxilar, carrega esse sofrimento. Ele foi uma criança traumatizada muito
cedo”.
O trauma da violência sofrida, além de atingir as vítimas diretas,
pode ser passado por herança. Em um dos casos do qual teve acesso, Silva
relembrou o de uma mulher cujo pai foi assassinado pelos torturadores. À
época, ela era criança, mas o pavor que tinha em relação à morte de seu
pai foi passado para as suas filhas, que hoje são adolescentes.
“Ela tem um medo que pensou que fosse normal, que é um medo de estar
no mundo. As filhas dela, adolescentes, também dizem possuir um medo que
não conseguem determinar de onde vem. É uma dificuldade grande de
incerteza de situações frente à morte.”
Segundo ele, a partir do testemunho da mãe durante tratamento
terapêutico, a ligação do sofrimento atual com o temor do passado passou
a fazer sentido para ela – e para as filhas também.
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