por Frederico Oliveira
Está em vigor desde ontem a Resolução N.º 175, de 14 de maio de 2013 aprovada
pelo Conselho Nacional da Justiça (CNJ) que obriga todos os cartórios
de registro civil a realizarem o casamento entre pessoas do mesmo sexo. A
referida resolução retirou o obstáculo administrativo motivado pela
orientação sexual dos interessados, que impedia o acesso a homossexuais
do direito fundamental do casamento.
O casamento é um direito fundamental do ser humano para o exercício da
comunhão plena de vida com outro ser da mesma espécie, direito esse
composto de uma série de princípios constitucionais auto-aplicáveis que
integram a sua estrutura jurídica como a dignidade da pessoa humana, a
liberdade e a segurança jurídica.
O casamento é um direito privado que, assim como os demais direitos
dessa natureza, é regulado no intuito de atender os interesses
particulares dos indivíduos de maneira a harmonizá-los e
compatibilizá-los às liberdades de todos. O objeto do direito privado é o
exercício da liberdade atendida na maior extensão possível,
permitindo-se restrições do seu exercício apenas diante da existência de
conflito com interesse público ou dano aos direitos individuais de
outrem. Nas normas de caráter particular, tudo aquilo que não é proibido é permitido,
devendo tais normas serem interpretadas com base nos princípios
constitucionais como a igualdade e a proibição de discriminação como
forma de evitar a opressão e privilégios na distribuição dos direitos.
Como o casamento foi regulado por lei que deve obediência à uma ordem
constitucional de uma sociedade fraterna, justa, pluralista e sem
preconceitos, esse instituto não poderia ser negado às pessoas de
orientação sexual homoafetiva que não se conformam com o equivocado
padrão social da diversidade de gênero para a realização de seus afetos.
Digo padrão social, porque de acordo com a lei brasileira não existe
nenhuma menção expressa de que o casamento é instituto privativo de
pessoas heterossexuais. Tanto na Constituição de 1988, como no Código Civil e na Lei de Registros Públicos, inexiste qualquer restrição, proibição ou impedimento para o casamento homoafetivo.
Os juristas conservadores, apegados a uma interpretação literal
descontextualizada, que não atende a nossa moldura constitucional,
utilizam o art. 1.514 do Código Civil (norma infraconstitucional) para
dizer que o casamento é privativo dos heterossexuais. O referido
dispositivo determina que "o casamento se realiza no momento em que o
homem e a mulher manifestam, perante o juiz, a sua vontade de
estabelecer vínculo conjugal e o juiz os declara casados." Ora, se a lei
não define que o casamento é direito privativo dos heterossexuais, nem
proíbe ou impõe impedimento ao casamento homoafetivo, vejo que a
referência à expressão "homem e a mulher" não é suficiente para impedir
ou restringir a capacidade de pessoas do mesmo sexo manifestarem o
consentimento para a realização dessa cerimônia. Nesse aspecto, a
intenção do legislador foi marcar a necessidade de manifestação
expressa, livre e desimpedida dos nubentes, como requisito exigível para
a realização desse pacto repleto de formalidades, assim como as
exigências de que a cerimônia deve ser realizada às portas abertas, na
presença de testemunhas etc.
A administração pública tem o dever de mover todos os esforços no
sentido de garantir o acesso de todos os indivíduos aos seus
procedimentos públicos. Essa orientação também deve ser seguida com
relação ao casamento, obedecendo, obviamente, as proibições e os
impedimentos previstos na lei, a exemplo da bigamia e do casamento entre
pessoas de parentesco próximo etc. (cf. art. 1.521 CC). Afinal de
contas, o casamento tem por finalidade, possibilitar ao indivíduo o
exercício seguro da comunhão plena de vida como direito natural de todo o
ser humano vocacionado a partilhar seus interesses com outro ser da
mesma espécie.
O CNJ não legislou, mas cumpriu sua função de zelar pela legalidade dos
atos administrativos praticados pelos órgãos do Poder Judiciário (art.
103-B, § 4º, I e II CRFB/88), extirpando, por via de um ato
regulamentar, a discriminação impeditiva dirigida aos homossexuais,
fruto da tradição de padrões desconectados da realidade e dos avanços
sociais. A resolução não é lei em sentido estrito, mas um ato administrativo que visa garantir a aplicabilidade e eficácia nos limites da lei elaborada pelo Poder Legislativo. Como não
há proibição ou impedimento do casamento homoafetivo, não há que se
falar em invasão ou usurpação de competência legislativa, pois a
resolução em tela, regulamentou obedecendo os estritos limites da lei
sem esbarrar em qualquer dos impedimentos e proibições nela contida.
Ademais, o referido ato regulamentar está vinculado à interpretação
conforme a Constituição deduzida pelo STF, no ano de 2011, ao reconhecer
que na união homoafetiva deve ser aplicada as mesmas regras e
consequências para as união heterossexual.
O que tivemos no caso foi uma adequação do procedimento do casamento,
decorrente da força normativa da nossa ordem constitucional que proíbe
toda e qualquer discriminação. Não houve inovação no ordenamento
jurídico, afinal de contas, o casamento já existia como instituto
regulado pelo Código Civil e pela Lei de Registros Públicos, houve
apenas uma adequação da aplicabilidade no mundo fático das referidas
leis à nossa moldura constitucional. O ato administrativo proferido pelo
CNJ na sua missão de zelar pela legalidade dos atos privativos
do Poder Judiciário, demonstra a maturidade do constitucionalismo
brasileiro alcançada na medida em que os responsáveis pela administração
da justiça passaram a enxergar que é inadmissível negar direitos às
pessoas em razão da sua orientação sexual.
A meu ver, no contexto de um Brasil homofóbico é importante uma lei
afirmativa para o reconhecimento dos direitos do casamento à população
LGBT, no entanto, a regulamentação desse direito independe de atuação
legislativa. Como dito anteriormente, não há na lei brasileira
qualquer referência impeditiva do direito de casamento entre pessoas do
mesmo sexo, inexistindo necessidade de alteração legislativa. Cabe
ao poder público prestar os serviços sem conferir privilégios, retirando
todo e qualquer obstáculo que impeça o acesso daqueles que necessitam
usufruir dos seus direitos, sobretudo o nobre direito de realização da
felicidade como direito absoluto e inalienável.
Aqueles que entendem que a negativa de acesso ao casamento de pessoas
homossexuais não afronta a nossa ordem constitucional estaria aceitando
a ideia de que a lei também poderia fazer restrição do casamento entre
negros e brancos, ou de pessoas de condição social e econômica diferente
como já o fizemos no passado. É obvio que a nossa ordem constitucional
não permite tais discriminações, assim como não permite fazer distinção
em razão da orientação sexual das pessoas, pois, o casamento se tornaria
um direito exclusivo de heterossexuais por capricho da nossa sociedade
que insiste em negar reconhecimento na realidade do afeto entre iguais.
Não consigo entender porque alguns juristas renomados e alguns
operadores do direito, ainda, insistem na ideia de que dependemos de uma
lei específica para possibilitar o casamento entre pessoas do mesmo
sexo. Acredito que na atual conjuntura esses mesmos juristas se negariam
em aplicar uma lei que restringisse o casamento entre negros e brancos e
entre pessoas de condição sócio-econômica diferente. Mas não, o que os
move é o extremo apego à tradição e um preconceito velado que os impedem
de enxergar que a restrição é claramente discriminatória e frontalmente
contrária à nossa ordem constitucional repleta de princípios
auto-aplicáveis que independem de lei para serem colocados em prática.
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