“Rejeito
qualquer tipo de rótulo”, declarou a psicanalista Letícia Lanz durante a participação no programa Na Moral, da TV
Globo, em que discutia a vivência transgênero ao lado de outras personalidades trans.
Na atração, Letícia – que se definiu ao jornalista Pedro Bial como simplesmente “gente” - revelou as
pelejas de se assumir trans depois de 50 anos, um enfarto, um casamento hétero de
27 e três filhos.
Hoje, casada há 37
anos com a mesma mulher, a arquiteta e psicologa Angela Dourado, ela
declara que o apoio da família foi 100% responsável para a nova etapa.
Mesmo assim, ainda é chamada de pai pela filha e de avô pelo neto. Desconforto
para algumas da comunidade trans e sinônimo de verdadeira transgressão para Letícia, que rejeita as
identidades binárias.
“Pode me chamar de Geraldo, diz que sou marido... Mas também pode me
chamar de Letícia, uma diva...”, sugere ela [ou ele] com bom humor para a
abertura da entrevista. Segundo Letícia,
a luta não é por uma identidade de gênero – ou por um tratamento
congruente ao
gênero apresentado, comumente associado às reivindicações trans – mas
por direitos.
Abaixo, ela
revela com muita sinceridade a diferença das lutas, os males dos rótulos e os
problemas que reproduzimos sem questionamentos. Uma entrevista transformadora, com
reflexões contemporâneas e que promete embaralhar as normas e dar luz a
pensamentos importantes sobre nós mesmos. Eu, pelo menos, saí totalmente
modificado após o bate-papo. Confira:
- No programa Na Moral,
você revelou ter levado cinco décadas para entender e assumir a condição de
pessoa transgênera. Isso quer dizer que nesses 50 anos suas questões de
identidade ficaram em suspenso, sem se manifestar em momento algum?
Não levei cinco décadas
para me descobrir, mas para me libertar da fortíssima repressão a que fui
submetida desde a infância. Foram cinquenta anos para reunir os meios de me
expressar com dignidade, sem medo, sem culpa e tendo orgulho de ser a pessoa
que eu sou. Aos três anos, já havia percebido que era diferente do rebanho .
Eles queriam que eu brincasse com bola e caminhãozinho, mas eu queria mesmo era
brincar de boneca, brincar de casinha. Apesar de quase iletrada, a única pessoa
que compreendeu e respeitou o meu desejo foi minha avó materna. Contra a
vontade de todos, ela me deu uma boneca, e com isso arranjou uma boa briga com
meus pais.
Depois, o processo que
vivi foi de muita repressão , mas é importante ressaltar que não foi uma
repressão violenta ou sacana. Toda vez que meu pai me apanhava ou era informado
pela minha mãe que eu tinha repetido uma cena de travestismo, ele não me batia,
mas conversava. Através de longas preleções morais, tentava mostrar que o que
eu estava fazendo não era adequado para um menino e que eu sofreria muito ao
longo da vida se eu não me corrigisse, de modo a fazer o que a sociedade espera
de um verdadeiro homem. Não era um
discurso mau. Era como ele via as coisas e ele não estava nem um pouco errado.
A sociedade é cruel com quem transgride seus rótulos de gênero.
O resultado da bondosa
“ditadura moral” do meu pai foi que fazer de mim o meu próprio ditador, não só
me impedindo e sabotando meus esforços para me assumir, como permanentemente me
policiando, nos mínimos detalhes de conduta, para que ninguém percebesse que eu
era uma pessoa diferente. Porém, mesmo com tanta repressão e auto-repressão
meus conflitos de gênero não desapareceram. Ao contrário, continuaram me
aterrorizando esse tempo todo. E não pense você que uma pessoa transgênera “armarizada”
sofre menos do que uma pessoa transgênera assumida. A dor é a mesma. Só muda a
modalidade do sofrimento enfrentado, ou seja, o sofrimento de ficar no armário
ou o sofrimento de sair dele. Não acho que eu tenha sido covarde por só
conseguir me expressar muito mais tarde em minha vida. Eu só fiz aquilo que eu
dei conta, na hora que eu dei conta.
- Além da questão transgênero, também existe o fato de você gostar de mulheres... Isso te livra de algum preconceito?
Sempre fui heterossexual.
Além de querer ser mulher, sempre desejei as mulheres. Mas não acho que por causa
disso eu esteja menos sujeita aos preconceitos. Na verdade, além de ser
considerada “transgressora de gênero” pela sociedade, ainda sofro muita
discriminação dentro do próprio meio transgênero, justamente em virtude da
minha orientação heterossexual. Um dos fundamentos dessa nossa sociedade
heteronormativa é a vinculação do sexo ao gênero e à orientação sexual. A regra
é: "se você é homem, é obrigado a sentir desejo por mulher. Se você é um
homem que quer ser mulher, tem que querer se relacionar com homens". Evidentemente, esse não é o meu caso, como
não é assim que as coisas funcionam na vida real: - há mulheres que gostam de
mulheres e homens que gostam de homens. Por que não haveria mulheres
transgêneras que gostam de mulheres?
- Você diz que os rótulos
de identidade atrapalham a vida das pessoas. É possível pensar em um mundo sem
eles?
O rótulo tende a se agarrar,
a ficar colado para sempre na testa das pessoas, fazendo com que elas terminem
sendo o próprio rótulo que as identifica, acabem se transformando no personagem
que representam, como na peça de Pirandello, “Seis personagens à procura de um
autor”. Quando se trata de gênero, então, essa é uma verdade incontestável. Em 1949, na sua obra “O
segundo sexo”, Simone de Beauvoir [escritora, filósofa e feminista francesa]
afirmou que "ninguém nasce mulher: - aprende a ser". Por extensão,
ninguém nasce homem, também aprende a ser. Ela estava querendo dizer que a pessoa nasce como um organismo biológico sexuado (macho ou fêmea) e que é
mediante a um aprendizado intenso, permanente e contínuo que esse organismo
adquire tanto um “corpo” quanto um “gênero”.
Quando o bebê nasce, o
médico ou a parteira olham para o meio das suas pernas e, se ele tem pinto,
imediatamente dão-lhe um rótulo que vai valer para a vida inteira: - "é
homem". E esse não é um rótulo qualquer, que você pode remover facilmente
ou a qualquer momento: - trata-se do seu próprio destino neste mundo, destino
que já está construído muito antes de a gente chegar a esse mundo. O bebê
“homem” vai ganhar um nome masculino, quartinho azul, brinquedo do Batman e uma
trajetória de vida completamente pré-definida por rígidos códigos de conduta
sociopolíticos e culturais.
- Você quer dizer que o
rótulo de identidade funciona como uma espécie de freio para a inesgotável
criatividade de nós, seres humanos?
Exatamente. Os rótulos limitam incrivelmente as possibilidades de uma pessoa ser e expressar-se nesse mundo, além de funcionarem
como uma “camisa de força” dos nossos desejos.
Apesar de eu ter nascido macho, ou seja, com um pênis, eu não estava
interessada em receber treinamento para ser homem. Mas, ao mesmo tempo, eu não
poderia me candidatar a receber treinamento para me tornar mulher, já que eu
não tinha nascido fêmea, ou seja, com uma vagina. É grotesco pensar que a
sociedade, baseada com num simples órgão genital, determina toda a trajetória
de vida de uma pessoa nesse planeta, definindo em detalhes o que você pode ou
não fazer.Mas como a parte não
define o todo, o pênis ou a vagina também não representam um destino
inexorável.
E nós, pessoas transgêneras, demonstramos através da nossa própria
existência, que há muitas outras possibilidades para os seres humanos além do
mixado binário masculino-feminino. Somos a prova viva de que é totalmente falsa
a relação direta entre sexo biológico, gênero e orientação sexual. Que não se
trata de uma relação natural, determinada pela natureza, mas de uma norma de
conduta que nos foi arbitrariamente imposta pela sociedade heteronormativa.
Nossas vidas transgêneras anunciam e denunciam permanentemente a existência de
infinitas outras combinações possíveis entre esses elementos.
- De alguma maneira homens
ou mulheres cisgêneros também sofrem com questões de identidade de gênero?
Certamente que sim.
Ninguém escapa de ser vítima das identidades de gênero. O “terrorismo de
gênero” nos persegue o tempo todo, sejamos homens, mulheres, transexuais,
travestis, crossdressers, drag-queens, andróginos e o escambau. Tanto pessoas
transgêneras quanto cisgêneras são alvo do controle social exercido através dos
rótulos de gênero. Há uma permanente vigilância para que você não saia dos
limites da identidade em que foi classificada ao nascer. Como essa vigilância é
exercida da forma mais sutil e “natural” possível, a maioria não se dá conta de
que está sendo vigiada e, consequentemente, aterrorizada, para que se mantenha
dentro das normas sociais de conduta de gênero.
Para um homem que vai urinar no
mictório coletivo de um banheiro público, por exemplo, surge sempre a pergunta:
"será que meu pinto é do tamanho adequado?". Isso é dramático desde
os tempos da escola! E eu pergunto: para quê isso? O quê o tamanho do pinto
acrescenta na construção do sujeito? É um controle social que não serve para
nada a não ser para atormentar as pessoas e mantê-las “reféns” da identidade de
gênero que receberam ao nascer. Atributos de gênero são construções sociais, não
são determinações biológicas.
A natureza não tem nada a ver com essa história
de que mulher tem que ser suave, tem que ser terna, tem que cuidar, tem que se
produzir, se maquiar... Não se trata de determinação genética, mas de
contingências históricas. Em outras palavras, ninguém é homem ou mulher porque
a natureza fez assim, mas porque, desde que nasceram, foram – e continuam sendo
ao longo de toda a vida – duramente “desaconselhados” e reprimidos a fim de que
se comportem de acordo com os códigos de conduta de gênero que a sociedade
criou respectivamente para o homem e para a mulher. Identidade de gênero é um
atraso, os talentos humanos não estão veiculados aos rótulos...
- Certa vez, entrevistei
uma cientista social que diz que as identidades são importantes para nos dizer
o lugar que ocupamos no mundo pois, se não conseguimos colocar em palavras
aquilo que somos, a nossa própria existência estaria colocada em cheque. O que
você diz sobre isso?
Estaria mentindo se
dissesse que as identidades não são importantes, mas estaria mentindo
igualmente se dissesse que são. Em
princípio os rótulos têm a função de identificar pessoas e coisas e desse ponto
de vista são extremamente úteis. “Um mal necessário”, como os chamou Judith
Butler, uma das maiores críticas das identidades de gênero. Imagine você dentro de um supermercado onde
os produtos não trazem nenhum rótulo ou procurando por um dentista num edifício
onde não há placas de identificação nas portas das salas. Mas o rótulo que
diferencia é também fonte para a criação de sérias desigualdades entre as
pessoas. Onde existem rótulos, sempre haverá a possibilidade de comparação, de
criação de “hierarquias” e de sistemas de dominação. Portanto, a identidade
“desnecessária” é a identidade que serve de motor para a criação e manutenção
de desigualdades entre as pessoas.
O fato de ser “mulher” não pode implicar de
maneira nenhuma em salários mais baixos do que os que são pagos aos homens,
assim como o fato de ser homem não pode servir de base para a prática do estupro,
em nome de um suposto “desejo da natureza” pela procriação. Enfim, enquanto as
identidades servem para informar qual é o nosso “lugar de fala” nesse mundo,
elas são muito bem vindas. Enquanto as identidades são um campo confortável
para a expressão de cada pessoa como ser humano neste mundo, elas são muito bem
vindas. Eu adoro me apresentar socialmente como mulher; é a persona que mais
diz a respeito da pessoa que eu sinto ser. O
problema é quando as identidades se tornam base para a produção e
manutenção de desigualdades, de hierarquias, de privilégios. Nesse caso elas são totalmente indesejáveis, totalmente mal
vindas, inimigas dos direitos humanos que devem ser fortemente repelidas e
combatidas.
- Sendo uma pessoa que
critica duramente as identidades, como é que você equacionou a questão de
identidade feminina e o exercício de papeis masculinos em sua própria vida?
Durante muito tempo em
minha vida, considerei que ser mulher, ser marido, ser pai e ser avô eram
coisas totalmente incompatíveis. De acordo valores de uma sociedade
patriarcal-machista-heteronormativa-careta, para exercer minha identidade
feminina eu teria que abrir mão do papel de marido, de pai e de avô. Esse era o
núcleo central de todos os meus conflitos e do sofrimento existencial que vivi
até me dar conta de que era possível, sim, conciliar todas essas manifestações,
que eram afinal manifestações do meu único ser. Mas foi uma luta árdua eu
conseguir fazer minha identidade feminina dialogar livremente, sem medo e sem
culpa, com os papeis masculinos que livremente assumi ao longo da vida. A
vantagem é que, sem presunção nenhuma, sempre procurei ser um ótimo marido, um
ótimo pai e um ótimo avô . Adoro minha família e não sei nem se daria conta de
continuar vivendo se, para viver a minha identidade feminina, eu tivesse que
abrir dela.
- Como a família apresentou
a sua figura para os seus netos, por exemplo? Eles te chamam de “vovó” ou de
“vovô”?
Me chamam de vovô, claro! Eu não sou a vovó
deles; eu sou o vovô! Outro dia mesmo, no supermercado, meu netinho de 3 anos
pegou um kinder ovo e pediu: "compra para mim, vovô?". A moça do
caixa corrigiu: "É vovó...". E ele insistiu: "Vovó nada, é meu
avô, viu!". Para ela – como para a galera em geral e como foi para mim mesma,
durante tanto tempo – é uma contradição
uma senhora ser avô. Mas ela ouviu de
uma criança que eu era o avô dela, um papel tradicionalmente masculino. Eu acho
essa quebra de rótulos genial [risos]. Mas se você perguntar a ele: “seu avô é
menino ou menina?” Ele responde no ato: “Menina!”.
Como meus netos ainda não
foram socializados eles entendem intuitivamente que identidade de gênero pode
muito bem ser uma coisa e papeis sociais, outra, e que uma coisa não conflita
com a outra. Fico pensando que a escola, em nome da “educação”, vai acabar
deformando essa visão tão pura e objetiva que meu neto tem da realidade. Com
certeza, um bando de gente preconceituosa e arrogante vai fazer de tudo para
lhe empurrar normas de conduta de gênero “goela abaixo”, a fim de fazer dele um
adulto bobo, travado e preconceituoso. Bobagens do tipo: "Você tem um
pinto/ você é homem / só homens podem ser avôs, etc, etc" que só servem
para promover o terrorismo de gênero a que já me referi.
- Embora não goste de
rótulos, você certamente deve ter procurado algum grupo com o qual se
identificou. Como foi essa trajetória de se sujeitar a um grupo e tornar-se
sujeito?
Minha trajetória sempre
foi muito solitária, única, e eu diria até muito especial. Nunca gostei de
futebol, que é o que os meninos são estimulados a fazer em suas horas vagas e
quando me vi impedida de dançar balé, que era uma coisa que me atraía muito e
que ainda hoje é considerada uma atividade tipicamente feminina, restou-me
estudar, ler, tentar compreender o mundo, as pessoas... A maior parte da minha
vida eu tenho sido como os judeus foram, ao longo da história. Eles se tornaram
filósofos e críticos porque eram marginalizados e excluídos da sociedade.
Então, tinham oportunidade de examinar as coisas de fora, exercendo o seu juízo
crítico com total independência e rigor.
Eu nunca me vinculei a nenhum grupo
específico. No início dos anos 2000, filiei-me a um grupo virtual que tinha
sido recém criado aqui no Brasil e que foi a porta de saída do armário para a
maioria das pessoas transgêneras de classe média/média alta. Mas eu acabei
saindo do clube, pois não encontrei muito respaldo ali, nem para o meu perfil
de pessoa transgênera, nem para as ideias que eu defendo a respeito de sexo,
gênero e orientação sexual. Pra falar a verdade, sempre tive muita dificuldade
em estabelecer amizades duradouras, principalmente com homens. Com pouquíssimas
exceções, meu círculo de amizades sempre foi formado quase que inteiramente por
mulheres.
Ao mesmo tempo, em termos de
aparência pessoal, os outros sempre me viram como uma pessoa ambígua, meio
andrógina e muito, muito, inconclusiva. Apesar de não ter sido uma criança
efeminada, talvez pela excessiva repressão a que fui submetida desde cedo,
nunca precisei fazer força para ter cara de menina, pois eu já nasci com cara de
menina. Se eu tivesse que fazer força, era para parecer homem – e como fiz
força pra isso, quase não tendo pelos e sem ter “pomo de adão”. Minhas
namoradas gostavam de mim muito mais como amigo, pois eu não correspondia ao
modelo de homem que elas queriam, apesar de eu ser heterossexual e amar tanto
as mulheres ao ponto de querer ser uma.
Quando o Bial perguntou ao meu filho
[Rafael] "Como é ter um pai assim?", ele respondeu "Normal, ele
sempre foi assim. Quando eu era criança, me perguntavam se o meu pai era
viado". Com a cabeça boa que ele sempre teve, resolveu a questão
super-bem, me compreendendo e aceitando como um viado que não tinha orientação
homossexual, mas cujo comportamento era muito semelhante ao de pessoas que
carregam o rótulo de homossexual. A resposta dele não foi ao ar, acho que por
falta de tempo do programa.
- Como foi revelar-se trans para sua mulher e sua família? Ela se espantou com
as suas transformações?
Minha
mulher e meus
filhos são pessoas incríveis e eu não queria que nenhum deles sofresse
por
minha causa. Por isso foi um momento de muito desespero na minha vida.
De um
lado, eu não queria envolver ninguém da minha família numa questão que
eu
julgava ser só minha. De outro, eu não queria perder nem a relação com a
minha
mulher, nem a família que nós duas formamos com tanto amor e dedicação.
Por
isso, no início dos anos 2000, quando vi que me assumir trans tinha se
tornado uma questão de vida ou morte, a primeira coisa que fiz foi sair
de casa. Aí foi
a vez da minha mulher desesperar-se. Ela me telefonava, implorando que
eu lhe
contasse o que estava acontecendo. Eu me silenciava, me recusando a
dizer, com
medo do que veria pela frente.
Até que decidi conversar com ela: 'Eu sempre
quis ser mulher, gosto de me vestir como mulher e gosto de mulher e isso tudo
sempre foi muito complicado em minha vida”. Ela virou pra mim com muita
delicadeza: “Ah, mas é só isso?”. Mas é claro que naquela hora ela não
percebeu, nem poderia ter percebido, toda a extensão do meu conflito e suas
repercussões, na vida familiar, social, no trabalho, na relação com os nossos
filhos, com o trabalho, com nossos amigos... Hoje eu sei que era muita tolice e
muito egoísmo da minha parte eu imaginar que a minha questão de gênero poderia
ser só minha: ela era uma questão familiar. E é como família que nós temos
enfrentado e até hoje superado todos os entraves sociais que se colocaram
diante de nós, dificultando a nossa em comum mas, ao mesmo tempo, fortalecendo
cada vez mais os nossos laços, na medida em que nos convidam – nos obrigam - a
lutar para permanecer juntas.
- Li em sua página que
vocês quase se separaram... Foi por conta da sua mudança? Deve ser conflitante
em um primeiro momento ser "hetero" e ter um marido
"mulher"...
A gente chegou a se
separar por uns dias no final do ano passado e... Foi terrível! O peso das
pressões sociais e os compromissos de vida quase conseguiram nos afastar uma
da outra. Foi barra! Mas a gente conseguiu continuar juntas e ainda mais
fortalecidas. Eu sempre soube que jamais teria paz de espírito e conforto
psíquico se não assumisse viver integralmente a minha condição de pessoa
transgênera. Mas o maior de todos os meus temores era imaginar que isso me
impossibilitaria de continuar representando o papel de marido. Esse era um
bloqueio que me deixava louco, pois eu não queria abrir mão de uma relação
belíssima, riquíssima, com essa mulher com quem eu vivo há 37 anos e que me
ensinou muito do que eu sou... [Respira e se emociona].
E aí está
certamente a
maior de todas as desconstruções que tive que promover em minha própria
vida:
assumir-me como mulher trans e continuar a ser o marido da minha mulher.
Quando
eu me assumi, a reação veio da sociedade: "Mas como vocês continuam
juntos? E dormem na mesma cama?". "Não, não pode!". Foi uma luta
enorme, um teste de sobrevivência do amor entre duas pessoas, até a
gente
descobrir que podia, sim, e que se danasse quem achava que não pode.
Tivemos
que crescer muito, como nunca tínhamos feito em toda a nossa vida em
comum, até
compreender que somos gente e que nos amamos como pessoas - não como
“identidades de gênero” ou como construções socioculturais de marido e
mulher.
Somos gente, pessoas de carne e osso, que sentem, sofrem, riem e que
desejam
simplesmente continuar juntas nessa caminhada. Pouco nos importa o
rótulo que a
sociedade nos deu. Gostamos uma da outra, da mesma forma intensa que
sempre
gostamos e pouco nos importa se cada uma de nós for homem ou mulher.
Mas hoje ela percebe que eu continuo sendo a mesma pessoa, que a Letícia é um “upgrade” do Geraldo.
- Você diz que luta por direitos e não por identidades de gênero. Por que
então mudar o nome, as roupas, o cabelo, o discurso? Isso não é uma forma de
reafirmação de gênero?
Porque eu tenho
imaginação. Já viu esses meninos que praticam RPG, cosplay e crossplay, que se
vestem imitando personagens de filmes, de mangás...? É mais ou menos assim que
vejo a coisa. Adoro ser uma personagem feminina! O desejo de viver como uma
mulher surgiu quando me mostraram o que era ser feminina, me dizendo ao mesmo
tempo que eu não poderia ser, exatamente por causa da identidade de gênero –
homem – que me deram ao nascer e que também me disseram ser “imexível”, já que
estava vinculada ao meu sexo biológico – macho. Acontece que eu podia sim!
Bastava eu detonar com essa coisa de identidade e me tornar o personagem da
minha preferência.É assim que hoje me tornei uma mulher muito legal para a
minha idade, certo?
Mas eu só fui me dar conta de que precisava detonar com a
identidade de gênero, totalmente castradora da minha criatividade, quando tive
um enfarto, cinco décadas depois de ter descoberto a minha predileção por
personagens femininas. A questão é que não precisamos de gênero para nos
identificar - e ser – uma personagem. E se nos faltar imaginação, é só pegar, por
exemplo, uma peça qualquer de Shakespeare ou uma revista de mangás. Há milhões
de personagens a espera de alguém que queira representa-las. A personagem é inteiramente lúdica,
totalmente prazerosa, intensa, viva e verdadeira. Ao contrário, a identidade de
gênero – lembrando que só existem duas: masculino e feminino ou homem e mulher
– é uma construção sociocultural morta, pronta e acabada, à qual cada pessoa
deve se ajustar em função do seu órgão genital.
Você vive uma personagem por
escolha própria. Ao contrário, a identidade de gênero é algo que lhe é imposto;
uma carga cultural da qual ninguém pode se omitir. A personagem é uma
plataforma que nos permite criar e variar a representação o tanto quanto a
gente queira; a identidade de gênero é uma lista de atributos e papeis que a
sociedade nos impõe a fim de sermos reconhecidos nessa identidade. Enfim,
enquanto a personagem liberta, a identidade prende e neurotiza cada vez mais.
- O que acha dos conceitos
e das regras que definem o que é ser crossdresser, travesti, transexual...?
Uma grande tolice, se
quer saber. São variações em torno do mesmíssimo tema. A matriz de todas essas
identidades é absolutamente a mesma, ou seja, a discordância e o desvio da
norma binária de gênero: masculino e feminino. A única diferença é a
intensidade da discordância e a profundidade do desvio. Não é a toa que muitas
transexuais se consideram no topo da pirâmide transgênera afirmando, com certa
arrogância e desdém, que travestis são transexuais que ainda não tiveram a
coragem de se operar e que crossdressers não passam de homens vestidos de
mulher...
Também é curioso o fato de que a maioria dos membros desses três
grupos não se reconheçam como transgêneros, termo criado para abrigar todas as
identidades gênero-divergentes. Aliás, internacionalmente, o “t” da sigla LGBT
representa todas as categorias transgêneras, exceto no Brasil, onde muitas
vezes a sigla é apresentada com três “tês”: LGBTTT, travestis, transexuais e
Transgêneros... Só não pergunte o que são Transgêneros: dificilmente alguém vai
lhe responder de maneira convincente... Como também não é nem um pouco
convincente as definições do que é transexual, travesti ou crossdresser.
Na
maioria dos casos, são verdadeiras ficções, construídas muito mais para dar
sustentação a alguma ONG, a algum programa do governo ou a ambos... Eu já vi
coisas escritas do seguinte teor: “transexual é uma mulher presa num corpo de
homem (ou vice-versa, no caso dos transhomens)” ou “travestis não desejam
passar por cirurgia de transgenitalização” ou “crossdressers são homens que se
vestem de mulher como hobby de fim-de-semana”... Sem falar nos disparates que
muitas ONGs e Grupos de Apoio são capazes de listar como “atributos” próprios
da identidade de gênero que representam e que devem ser atendidos pelos seus
associados a fim de que sejam reconhecidos como detentores de tal identidade.
Como afirmou Judith Butler na sua obra “Problema de Gênero”, as entidades
representativas de categorias de gênero acabam produzindo as identidades que se
propõem representar...
Quando Diana Maria criou o BCC na Internet, no final dos anos noventa, foi a
tábua de salvação da população transgênera de classe média/alta no Brasil, até
então sem nenhum canal de expressão ou comunicação pública. Mas ela se baseou
no modelo norte-americano do Tri-Ess, copiando de lá as mesmas regras e
idiossincrasias - somos héteros, nos vestimos de mulher por puro prazer... Ela
sabia que tudo isso era história da carochinha, mas até hoje prevalece esse
discurso inocente, inconsequente e totalmente alienado. Atualmente, de 10
crossdressers históricos (eu inclusive...), 11 estão vivendo como mulher em
tempo integral mais da metade passou por cirurgia de reaparelhamento genital...
- Existe também o peso do que cada palavra significa?
Dificilmente iremos entender a falsidade e a falência conceitual das
categorias transgêneras no Brasil sem fazermos uma leitura incluindo a varável
classe sócio-econômica. Em outras palavras, as grandes diferenças entre as categorias transgêneras no
Brasil sofrem um importante viés de natureza sócio-econômica, como de resto
tudo o mais no nosso país. Travesti é sinônimo, sim, de prostituição, de rua,
de pobreza, Madame Satã... Transexual carrega o fortíssimo perfil de patologia
a ser urgentemente tratada. E crossdresser é homem de classe média/alta cujos
vínculos e compromissos familiares, profissionais, políticos e econômicos não
recomendam uma exposição pública aberta, considerando a natureza patriarcal
machista da nação brasileira.
Por isso, muitas "travestis", quando
melhoram um pouco de vida, começam a se identificar como
"transexuais". A Roberta Close foi assim: se apresentava como
travesti, fazia programa, foi assim que ficou conhecida. Depois que
ficou
famosa passou a apresentar-se como transexual, assumindo a
patologia. Toda diferenciação produz desigualdade. Como pessoas
transgêneras, em vez de
pensarmos em defender rótulos de identidade, precisamos pensar em obter a
nossa
plena inserção na sociedade, em resgatar os nossos direitos de
cidadania.
-
Mas existem diferentes
maneiras de se enxergar, não? Tem transexual que se considera "mulher de
verdade", tem travesti que se diz "dois em um", tem até quem queira
apagar inteiramente o seu passado depois da
cirurgia de redesignação sexual...
A respeitadíssima APA
(American Psychological Association) define identidade de gênero como sendo o
senso interno da pessoa quanto ao seu pertencimento ao gênero masculino ou ao
gênero feminino. Trata-se, assim, de um conceito altamente subjetivo: apenas a
própria pessoa pode dizer se pertence ou não a esse ou àquele gênero. O problema
é que, na contramão dessa definição, a sociedade se reserva o direito de
definir o gênero de cada pessoa a partir da genitália exibida pelo bebê ao
nascer. E esse é apenas um dos muitos problemas que cercam a questão da
identidade de gênero. Há, por exemplo, o
caso de pessoas que se atribuem um determinado gênero em estado de delírio e,
portanto, não podem ser levadas a sério. Certas psicoses também produzem falsas
identidades de gênero, assim como personalidades cindidas.
Acho, por exemplo, muito psicótico o
discurso: 'sou uma mulher presa em um corpo de homem'. Primeiro, a pessoa não
nasce mulher, torna-se mulher, como já disse antes. Ser mulher é muito mais uma
questão sociopolítico-cultural do que uma determinação biológica. Segundo, ser
fêmea biologicamente falando é menstruar, é poder gerar filhos... Todos sabem
que a trajetória de uma pessoa não pode ser apagada com uma cirurgia de
reaparelhamento genital. Como psicanalista, digo que a história de vida de uma
pessoa é a base de construção do sujeito e negar a própria história é um claro
sinal de psicose. Rejeitar o passado ou é doença mental da pesada ou então é
mau-caratismo. Prefiro acreditar que é doença...
O território do seu corpo é seu por definição
e você pode brincar com ele como quiser. Se acha que mudar o nome dos
documentos vai te deixar feliz, mude. Se quer fazer a cirurgia, faça... Mas não
é legal negar a própria história. Afinal, por que não assumir a identidade
transgênera? Será que a identidade trans serve apenas como ponte para mudar o
corpo de modo a tornar-se uma pessoa perfeitamente enquadrada em um dos dois
gêneros oficiais? Ou bem a pessoa é transgênera ou está mais para uma
“cisgênera enrustida”, como escrevi recentemente em um dos editoriais do meu
site leticialanz.org. Será que as pessoas não vêm que, ao tentar
desesperadamente tornar-se indivíduos do outro sexo, estão apenas confirmando e
contribuindo para aumentar ainda mais a força do sistema de gêneros que é,
paradoxalmente, a fonte de todos os seus tormentos?
Eu quero ser mulher, sim,
mas fora de um sistema de gêneros que é basicamente misógino, que acua e
violenta as mulheres, que é patriarcal-machista e heteronormativo. Mas,
infelizmente, muitas pessoas transgêneras afirmam que seu desejo é “lavar a
cueca” dos seus bofes... Num claro retrocesso à igualdade de direitos da mulher
na sociedade, conquistada a tão duras penas e que ainda nem está consolidada.
Esta é uma atitude totalmente machista e cisgênera. Não tem nada de transgênera
e muito menos de libertária.
- O que você está querendo
dizer é "Parem com esse discurso de vitimização”?
Uma das
maiores pragas no meio transgênero é o discurso de vitimização, que eu apelidei
de “coitadismo de mim”. Não é fácil ser uma pessoa diferente em uma sociedade
onde todo mundo tem obsessão por ser igual. Mas transformar as nossas
dificuldades de aceitação pela sociedade em um processo de auto-piedade
neurótica é uma péssima estratégia de inserção social. O discurso de que eu sou
excluída, preterida, marginalizada, de que me faltam oportunidades de trabalho,
de realização profissional e até de realização afetiva só reforça o modelo
binário de gênero que foi imposto e com o qual eu tenho profundas divergências.
Na verdade, muita gente se regozija ao ouvir o rosário de penas de uma pessoa
trans: “É merecido passar por isso; foi você que procurou com suas próprias
mãos! Pare com isso e você não será mais molestada”.
Para a nossa sociedade
heteronormativa-cisgênera, "se você foi molestada, você é quem
provocou". A vítima é transformada
no seu próprio algoz; descaradamente responsabilizada pela violência que
sofreu. Penso que é necessário mostrar à
sociedade que existe uma outra face das pessoas transgêneras. Que somos capazes
de viver uma vida produtiva, que somos capazes de realizações, que somos
pessoas inteligentes e competentes.
Porque pessoas transgêneras que deram certo não são mais massageadas
pelo próprio meio trans? Porque elas recebem menos cobertura do que os terríveis
assassinatos que acontecem todos os dias no nosso meio e que, naturalmente,
precisam ser divulgados e denunciados? Mas, da mesma forma, precisamos botar a
boca no trombone e mostrar que nós podemos ser “incensadas”, em vez de ser
“assassinadas”.
Muitas vezes o preconceito está no nosso próprio olho. Quase
sempre a dificuldade que enfrentamos no mundo exterior tem raízes dentro da
gente e este é um ponto que precisamos e devemos trabalhar. Até onde a repulsa
vem da comunidade e não de nós mesmas? Até que ponto a gente não arma a cena do
crime e vive esperando o momento em que também seremos vítimas de rejeição, de
exclusão e de maus-tratos?
- Mas você não acha que é fácil dizer isso sendo uma pessoa que já
tem uma base financeira estável, uma família que te apoia, uma profissão
autônoma e, de certa maneira, vive uma vida totalmente independente da
sociedade, muito diferente de uma pessoa trans que tem 14 anos, que não tem
emprego, que foi expulsa de casa, que sofre bullying na escola, que precisa se
prostituir para sobreviver...?
Você está inteiramente
certo. Mas também está inteiramente errado. Onde você está certo: a guria de 14
anos precisa imensamente de ser acolhida e protegida pois, evidentemente, está
vivendo numa situação-limite, de risco permanente. Casos como o dela precisam
ser levantados e exaustivamente
divulgados. Onde você está errado:
pessoas transgêneras bem sucedidas como eu, ou até muito mais do que eu,
costumam desfiar rosários e rosários de tormentos e aflições, em vez de expor
publicamente os seus êxitos pessoais, mostrando que pessoas trans podem dar
certo como qualquer pessoa cisgênera bem sucedida.
Será que essas pessoas
transgêneras bem-sucedidas não compreendem que, ao vender uma imagem de
sofredoras e perdedoras, em vez de lutadoras e vencedoras, acabam contribuindo
para piorar ainda mais a vida da pobre guria trans de 14 anos? Afinal de
contas, pra que a sociedade deve proteger e dar apoio a uma menina trans de
periferia se até uma trans de classe média/alta diz que tudo pra ela deu errado
na vida? Numa sociedade como a nossa, que só valoriza quem tem dinheiro e faz
sucesso, e que despreza a choradeira dos perdedores, é uma péssima estratégia
tentar afirmar a identidade trans a partir do que ela tem de pior, de mais sofrido,
de mais sombrio, de mais doentio.
Pode ser, também, que
essa necessidade mórbida das pessoas trans reforçarem suas tristezas, fracassos
e perdas nos seus discursos, em vez de falarem das suas vitórias, alegrias e
êxitos, resulte da culpa que sentem em
sentir prazer. Um prazer em geral que está muito além e muito acima das
possibilidades de sentir prazer a que a média das pessoas têm acesso.
Realizar-se como uma
pessoa trans produz um grau de prazer muito grande. As travestis, por sua vez,
são capazes de alcançar elevadíssimos graus de prazer sexual. Então o discurso
de coitadinho pode ser muito bem uma forma de se penitenciar pela culpa, porque
vivemos numa sociedade onde somos educadas a nos sentir envergonhadas e
culpadas todas as vezes que sentimos prazer. É a nossa criação cristã, que
desqualifica, desvaloriza e até pune as manifestações de prazer,
particularmente de prazer sexual. Mas o prazer é que tem que ser valorizado!
Nunca o sofrimento, a vergonha e dor.
Respeito à identidade de
gênero e o uso de artigo feminino para uma travesti e transexual são
importantes?
“É muito importante!”,
responderia a maioria das pessoas trans, numa cantilena ensaiada, muito comum
no nosso meio trans. Já vi transgênero sair para as vias de fato porque não usaram
corretamente o artigo ao dirigir-se a ela. Provavelmente disseram “o”
travesti ou “o” transexual e isso, para
muitas, representa uma agressão da pior espécie. Eu sinceramente acho uma perda de tempo
brigar pelo uso correto do artigo ou pronome. Acho que é gastar a pouca munição
que temos num alvo totalmente equivocado. Reforçar o emprego “correto” do
artigo e do pronome para nominar identidades trans implica num indesejável
reforço do modelo binário de gênero.
Ao
contrário, o uso incorreto do artigo e
do pronome obriga a sociedade a pensar fora da caixinha do gênero. Como
eu já
disse, em vez de ser chamada de vovó, por ser uma mulher, eu quero mais é
que meu neto me chame de vovô, a fim de marcar ainda mais uma suposta
contradição
entre a minha identidade de gênero – feminina – e o papel de gênero –
masculino
– que estou vivendo em perfeita harmonia. Isso sim, contribui para
desconstruir
gênero, para detonar com a ditadura do binário de gênero
masculino-feminino.
Classicamente,
as
travestis se posicionam fora binário oficial, afirmando que não são “nem
homem,
nem mulher, mas travesti”. Já as transexuais têm em geral um discurso de
reconhecimento e aprovação do binário de gêneros, ao afirmar que são
“verdadeiramente mulheres”. Eu pouco me importo com o jeito que alguém
vai me
chamar ou em que categoria de gênero vai me posicionar. O importante é
estar
sendo a pessoa que eu sou; isso é a única coisa que para mim realmente
conta.
Quanto ao modo como a pessoa me chama, digo sempre que eu me chamo de eu
e que os outros podem me chamar como acharem melhor. Pra mim, você pode
me chamar de
Geraldo no seu texto, pode dizer que eu sou marido de uma mulher como
pode me
chamar de Letícia, uma verdadeira diva...[risos] Na verdade, Letícia é o nome
que eu mais gosto, mas me chamar de Geraldo não vai me fazer menos mulher,
menos diva, menos poderosa do que sou. Como me chamar de Letícia não faz de mim
uma super-fêmea, porque isso eu já sou [risos].
- Você não acha que as
pessoas que não respeitam a identidade de gênero estão querendo dizer que
aquela trans, na verdade, é um homem?
Se alguém eventualmente
me tratar no masculino de forma desrespeitosa ou pejorativa, eu vou mandar ele
pra puta que o pariu [risos]. Agora, não é porque alguém me chamou de cachorra
que eu vou sair por aí latindo [risos]... Poxa! Só vamos nos sentir mulher se
formos tratadas pelo artigo feminino? Se for usado o artigo masculino, vamos
nos sentir mal, vamos sapatear, vamos surtar? Eu quero mais é que as pessoas me
vejam fora da lógica binária dos gêneros, como alguém que transgrediu as normas
de gênero com muita satisfação e prazer. Eu não quero pactuar de maneira
nenhuma com esse sistema binário de gêneros, machista, patriarcal, sacana e
violento. Não dá para ter controle do que as pessoas pensam de nós; o que você
pensa de mim não é da minha conta.
E se alguém me chamasse de homem vestido de
mulher (como alguém já chamou, em off, aqui mesmo, dentro do próprio gueto...),
eu diria simplesmente: "Tá vendo? Mesmo sendo homem consigo ser esse show
de mulher que você está vendo [risos]". Isso sim, é motivo de glória.
Quando alguém diz que
você parece mulher cisgênero, como fica a sua vaidade?
Não vou dizer que não
gosto desse elogio. Ele é muito melhor de se ouvir do que um xingamento. Mas
pra mim é indiferente. Não vou me modificar em nada em função desse feedback.
Estou consciente de quem eu sou e de como eu sou, como conheço muito bem as
minhas possibilidades e limitações. Acima de tudo, eu tenho autocrítica. Mas
olha, chegar a essa posição levou muuuito tempo [risos].
- Acredita que os gays têm medo das trans?
Não são todos, é claro. Tenho excelentes interlocutores e defensores da causa
transgênera entre os gays. Mas há uma parcela grande e muito representativa de
gays que não compreendem, não aceitam e repudiam qualquer tipo de expressão
transgênera. Essa expressiva parcela de pessoas traduzem a nítida tendência de
se buscar, cada vez mais, uma ampla “sanitização” do movimento gay, de modo a
livra-lo da praga das “bichas-loucas”, pobres, feias e indiscretas. Nesse
processo de “limpeza étnica-socio-polítca-cultural” as pessoas transgêneras tornam-se,
naturalmente , o alvo preferencial da crítica e da exclusão. A coisa é tão
séria que muitos gays hoje em dia que, longe de representarem “ameaça às
famílias”, deveriam ser aplaudidos de pé pelos fundamentalistas de plantão,
como valorosos defensores da moral e dos bons costumes...
De um modo geral, há
muita desinformação entre as pessoas G-L-B sobre o que é a condição
transgênera. A maioria expressa a mesma opinião da massa mal-informada de que
transgênero não passa de viado metido a besta, gente aparecida e “espetaculosa”
que compromete a inclusão definitiva dos gays na sociedade
heteronormativa. E o pior é que não vou
negar que no próprio meio transgênero também haja uma pá de gente que se veja
dessa forma. Mas identidade transgênera é algo inteiramente distinto de
orientação homossexual.
Dados epidemiológicos da Organização Mundial de Saúde,
por exemplo, dão conta que a incidência de orientação homossexual na população
transgênera tem as mesmas proporções que na população em geral (cisgênera). Ou
seja, ser transgênero não implica necessária e automaticamente em possuir
orientação homossexual, como é a crença generalizada. A letra “T” está sobrando
na sigla LGBT, mesmo porque somente uma parcela dos Transgêneros estaria sendo
representada nas demandas L e G. Aliás,
no Brasil, graças à política de captação e esvaziamento dos movimentos
sociais, promovida pelo Governo Federal, o movimento LGBT tem sido praticamente
um balcão de demandas G - no máximo G-L, inteiramente subordinado e submisso .
Não acho, portanto, que
seja só medo: há raiva, há desdém, há menos-valia, há desinteresse, há
rejeição, há muita violência simbólica. Ainda mais nesse momento em que
assistimos um triste reaquecimento de conservadorismos altamente refratários e
reacionários às conquistas dos direitos humanos. Tenho um irmão homossexual que
não me aceita, que não gosta de mim e é um dos meus críticos mais mordazes.
Entretanto, ele é também uma das pessoas mais enquadradas que conheço. Ele se
veste como um macho alfa, comporta-se como tal e, graças à doutrinação da
igreja católica, com quem ele mantém fortes vínculos, mantém um discurso de
homossexual culpado pela sua própria condição homossexual. Debaixo do sólido
rótulo de homossexual conservador, que ele escolheu como forma de abrigo e
defesa, eu sei que é muito difícil para ele entender e aceitar a minha
liberdade de expressão. Escrevi um livro que será lançado brevemente, assim que
aparecer uma editora interessada: “Quem tem medo de Letícia Lanz”, em que faço
esse tipo de constatação e denúncia.
Conta um pouco como é o seu dia a dia...
Leio, reflito, escrevo,
exponho, polemizo, debato, refuto, revejo, me posiciono politicamente. Essa
sempre foi a função de uma intelectual na sociedade. Mas também sonho, compartilho e me relaciono
com todo tipo de pessoas. Adoro conversar, contar casos, conhecer histórias.
Acho que também por isso eu me tornei psicanalista: a psicanálise é uma
produtora de sentidos, a partir de narrativas de vida, colchas de retalhos
pacientemente tecidas a quatro mãos... E sou muito família. Assumo meu papel de
marido, pai e avô como se fosse um ritual dedicado ao Universo. E assumo não
apenas os filhos que ajudei a parir, mas um monte deles que fui adotando ao
longo da vida. Por último, adoro me produzir. Gosto de me sentir bonita, por
dentro e por fora, quando me olho no espelho. E sou uma perua assumidérrima.
Minha referência é a Hebe Camargo [risos]. Agradeço à Deusa Mãe, todos os dias,
por estar viva e atuante, engajada nas lutas do meu tempo e feliz de ser sem
medo.
Diante de toda a nossa
conversa e das questões levantadas, qual é o seu maior sonho?
Meu sonho é mudar o
mundo. Li em algum lugar que só pessoas muito loucas acham que conseguirão
mudar o mundo – e que são elas que realmente conseguem. Sou suficientemente
louca para estar nesse empreendimento [risos].
Quando comecei a usar a palavra 'transgênero', há cerca de dez anos,
quase fui defenestrada dos meio trans! Ainda hoje sou repudiada por isso.
Mas
agora, que a palavra está sendo mais aceita como um termo guarda-chuva, eu já
parti para o discurso queer. São lutas muito importantes, de resgaste de
direitos, de respeito à construção de si próprio a partir do que cada pessoa
pensa e quer de si mesma. De defesa incondicional de toda e qualquer expressão
de gênero, de combate ostensivo aos rótulos de identidade, tacanhos,
restritivos, castradores, que só servem para produzir desigualdade e violência.
De respeito incondicional ao território do corpo, que pode e deve ser explorado
e desfrutado de acordo com o livre desejo de expressão de cada individuo, sem
nenhuma regulamentação por parte do Estado ou de religiões.
Meu sonho, enfim, é
ver sociedade livre de injustiças e de preconceitos, baseada na lógica
elementar da verdade e na lógica, totalmente sem lógica, do amor.