Uma
dança pode ser muito leve, moderada, milimetricamente desenhada como os
giros eternos de uma bailarina. Pode ser sensual quando une o corpo e
alma em busca de passos de sedução. A dança expressa o ódio, a dor e a
pressão e cada um desses elementos podem ser vividos diariamente no
percurso de todo ser humano. Desde que existe uma vida, existe uma dança
a embalar cada momento, mesmo os mais desafiadores.
Luiz Fellype conheceu momentos desafiadores, mas quando olhava ao seu
redor somente enxergava o inverso de suas realidades e a elas delegava
seus sonhos: a fama, o glamour, o sucesso em si. Mas também conhecera a
face de muitos desses sentimentos e percebeu que eles evaporam
rapidamente se não houver realmente uma consistência em seu real valor.
Na Abamba, os meninos do Barão se reconheciam pelos medos que
vivenciaram, pelas cicatrizes deixadas, pelas torturas psicológicas que
já foram submetidos e, principalmente, as asas cortadas e muitas delas
deformadas pela total castração de seus sonhos e afetividades.
E um passa a ser um espelho para o outro e as vidas passam a se
reconhecer e os medos passam a serem domados e os sonhos alimentados em
cada novo movimento. A dor de um era única, mas com conteúdos muito
semelhantes, como os nós que foram atados dentro da Terra castradora do
Não. E os nós da vida são apenas reparados se você retornar ao ponto do
ato e imediatamente usar o mesmo não como forma de expulsar a mão
opressora que desnorteia os sentidos. Reunir todas as mágoas, todos os
medos, todos os preconceitos e expulsá-los definitivamente de suas
vidas, isso exige uma operação conjunta e os meninos do Barão tinham
esse desejo em comum: libertar-se da mão opressora que desnutre o
potencial inerente de cada um deles.
E eles fazem de cada um dos exercícios cênicos, uma expressão de
libertação e assim nutrem suas essências, deixam fluir o seu verdadeiro
eu e trabalham arduamente pela conquista de seus sonhos. Alguns não
aguentam o peso da própria vida e se entregam aos vícios. Luiz não tem
preconceito algum de falar isso abertamente e isso também o fez ver o
lado escuro da vida para apreciar com muito mais dignidade o lado claro e
límpido, e perceber que cada uma das suas realidades poderiam ser
recicladas, repaginadas, invertidas e que em suas mãos estava o destino
que ele desejaria seguir.
E quem conhece alguns trechos do maravilhoso poema de Castro Alves O navio negreiro
sabe que ele descreve com imagens e expressões terríveis a situação dos
africanos arrancados de suas terras, separados de suas famílias e
tratados como animais nos navios negreiros que os traziam para ser
propriedade de senhores e trabalhar sob as ordens dos feitores. Cada um
dos meninos em cena poderia conter um dos sentimentos que tinham em cada
uma das estrofes daqueles versos de Castro Alves. Ele aprendiam com a
arte e com a dança dores parecidas e em cada apresentação podiam
expulsar os terríveis Nãos que também afligiam suas vidas.
Dessa vez o mesmo Não deixava de ser uma arma de acusação para se
tornar uma excelente arma de defesa das libertações. A coragem de dizer
Não ao passado e começar um novo presente. O desafio de com o Não impor
seus limites. O esplendor de dizer Não ao não, encher o peito e
desbravar as portas que impedem a passagem real para o outro lado da
história, onde ele se projetou. Ser quem se verdadeiramente é, sem
medos, sem amarras, sem medo de correr e saltar no centro do palco e se
curvar para a plateia que não se mede em pensar, e sim apenas sentir o
impacto do movimento no seu próprio ser. A primeiridade como diz os
princípios da semiótica, pela visão de Charles Sanders Peirce,
que significa: Primeiridade – a qualidade da consciência imediata é uma
impressão (sentimento) in totum, invisível, não analisável, frágil. Tudo
que está imediatamente presente à consciência de alguém é tudo aquilo
que está na sua mente no instante presente. O sentimento como qualidade
é, portanto, aquilo que dá sabor, tom, matiz à nossa consciência
imediata, aquilo que se oculta ao nosso pensamento. A qualidade da
consciência, na sua imediaticidade.
Mas uma das características de todo ser humano é ultrapassar seus
próprios limites e o coreógrafo e bailarino, Beto Regina, mentor dos
meninos, sabia que o seu projeto era apenas um início para uma longa
estrada que cada um deles desejasse traçar e Luiz Fellype não se
acomodou.
Na manhã da última apresentação da temporada, em uma cidade da região
de Campinas, Luiz recebeu um telefonema que fora selecionado para um
dos testes finais para integrar a companhia do renomado bailarino Ismael
Ivo, um dos grandes nomes da dança contemporânea no mundo. O primeiro
impacto foi o pensamento viciado do não, que isso seria impossível, mas
sua determinação o fez realizar a apresentação com grande estilo e
lançar a meta de fazer o seu melhor e se dedicar ao máximo para ser um
dos escolhidos para integrar o grupo e seguir rumo ao exterior compor o
seu novo espetáculo.
No dia do teste, Luiz Fellype se nutriu de coragem e desafiou cada
uma das etapas, confiante em desempenhar seu melhor papel. As etapas
foram se encerrando e chegando perto do momento da decisão e da escolha.
Mas no momento final, a luz da esperança escureceu e ele não foi
selecionado.
“Um vazio enorme tomou conta de mim. Minha vida se desfez em questão
de um segundo, um não, uma não aceitação e um sonho encerrado. Não
conseguia me movimentar, meu corpo travou e as lágrimas começaram a cair
sem controle, quase me levando ao desespero. Não consigo lembrar o
tempo que permanecei ali imóvel, em total escuridão, sem saber qual
passo dar no momento seguinte. Mas um relampejo de vida tomou conta de
mim e fui ao encontro de Ismael e pedi com toda força do meu ser que me
desse mais uma chance. Ali foi a prova que um Não, não era um fim, mas
sim um recomeço. Ismael olhou nos meus olhos e me elogiou,
principalmente pela sinceridade, mas as palavras que me sensibilizaram
foram: – Você é um excelente bailarino, maravilhoso, mas ainda é um
pombo, que sabe voar lindamente, mas eu quero que você desenvolva o voo
de uma serpente. Eu quero uma serpente no palco Cresça e se desenvolva
por mais um ano. Ano que vem você vem com a gente .”
Ele experimentou a força do Não como uma forma de renovação e partiu
com a certeza de estudar ainda mais e buscar a serpente que Ismael
citara, dentro de si. O abraço do amigo e incentivador Beto Regina, o
colocou de volta ao desafio e ele não se entregou a dor, inevitável no
seu antigo “EU” quebrou a casca do sentimento de inferioridade e foi em
busca da lapidação.
O pombo e a serpente
Traçar um novo caminho
Subir degrau por degrau
o vale alto da superação
Vários obstáculos separam o sonho do real
O voo e a queda
Os tropeços
As dores físicas e emocionais
Muitas vezes os pequenos descompassos
Remetem-nos novamente ao chão
Desassossego e desilusão
Momento de respirar
Inspirar e novamente se levantar
Uma mão conduz outra
E se forma uma rede de faces identificadas
Dores compartilhadas pela sensibilidade de passos
Em constante movimento
E em ciranda começaram a girar
Se entrelaçar e se experimentar
A possibilidade de mudança
Constatação de fatos vistos de outros ângulos
E como em um grande baile colorido pelas diversidades
Cada um começa a desenvolver seus passinhos
Uma celebração proveniente da garra individual
A dança das luzes humanizadas
Dança sobre o movimento humano
Dança da superação.
O voo das águias, pombos, borboletas e flores
E no centro da vida, encantada pelo som das brisas
Como uma flauta mágica
A serpente se levanta do chão e começa a levantar
Erguer seu tórax nu sobre o chão
E rodopiar, ganhar mais força e vitalidade
Para sem medo do abismo que separa o ar do chão
Se levantar e seguir sua dança
pelos vastos campos
da sua emoção.
Querendo descobrir
Até onde vai a sede do ser humano
Em constante mutação!
(Márcia Nicolau)
Fonte:
Texto/Entrevista de Márcia Nicolau
Luiz Fellype Ribeiro além der ser excelente bailarinho também é filho de Kisimbi, de Mãe Kuianikewa, desta casa Inzo Musambu Rainha das Águas Doce