Bustos do imperador romano Adriano (com uniforme militar, à esquerda) e de seu companheiro Antínoo
The Trustees of the British Museum
LONDRES. Enquanto o mundo começa afinal a reconhecer juridicamente os
direitos dos casais de pessoas do mesmo sexo, o British Museum acaba de
inaugurar um projeto ousado iniciado há sete anos. O livro “A little
gay history: desire and diversity across the world” (“Uma pequena
história gay: desejo e diversidade pelo mundo”, em tradução livre),
recém-publicado pela editora da instituição, é um catálogo com peças que
comprovam que o homossexualidade faz parte da história da Humanidade há
pelo menos 4 mil anos.
A publicação deve colocar ainda mais lenha
na fogueira do debate que ganhou o planeta nos últimos anos. E talvez
seja argumento final contra aqueles que defendiam o projeto que ficou
conhecido como a “cura gay”, que tramitava no Congresso Nacional até a
semana passada, quando foi engavetado.
- Não se trata da História
de uma minoria, mas sim de parte da História da Humanidade. O desejo por
pessoas do mesmo sexo sempre existiu em todas as culturas - disse ao
GLOBO o curador do museu, Richard Parkinson, que está à frente do
projeto desde 2006.
Peças selecionadas do acervo
Das
milhões de peças do acervo do museu, 44 foram selecionadas em um
primeiro momento para o livro, mas outras poderão ser identificadas a
partir de novas pesquisas. Entre as escolhidas estão os bustos do
imperador Adriano (117-138 d.C.) e do seu amante Antínoo. Este último,
depois de morrer afogado no Rio Nilo com apenas 18 anos, foi declarado
deus por ordem do imperador em luto, que também mandou fazer esculturas
em sua homenagem e erguer uma cidade com o seu nome, Antinoópolis. De
acordo com o British Museum, pesquisas realizadas com os visitantes, por
ocasião de uma grande exposição sobre o imperador romano em 2008,
mostravam que poucos sabiam da sua preferência por homens.
Xilogravuras
eróticas japonesas também são destaques da publicação, em versões que
mostram duas mulheres e dois homens fazendo sexo. Nesta última, um deles
está vestido de mulher no estilo do tradicional teatro kabuki, em que
atores interpretavam tanto os papéis masculinos quanto os femininos.
Outra peça em destaque é a “Taça de Warren” (10 d.C.), considerada a
aquisição individual mais cara já feita pelo museu, no valor de 1,8
milhão de libras (cerca de R$ 5,8 milhões). A taça de vinho romana é
decorada com cenas de sexo entre homens e teria sido encontrada perto de
Jerusalém. Também tem destaque uma lâmpada de cerâmica turca do século I
que mostra duas mulheres fazendo sexo.
Bem antes destes objetos,
no século XVIII a.C., a Epopeia de Gilgamesh, um dos poemas mais antigos
de que se tem notícia, já tratava do desejo por pessoas do mesmo sexo. A
tabuleta encontrada no Iraque conta a história do deus-herói Gilgamesh e
seu companheiro íntimo, “o cabeludo e selvagem Enkidu”, como descreve o
texto do museu. Ambos lutam e derrotam a deusa Ishtar. Enkidu, no
entanto, morre pouco depois, o que leva Gilgamesh a passar o resto do
poema atormentado pelo luto e tentando superar a morte do amigo. Antes
mesmo de conhecê-lo, Gilgamesh fora alertado de que o amaria como uma
esposa.
Para o museu, tal intimidade não significa necessariamente
desejo sexual. Mas alguns historiadores discutem sobre o uso de
palavras ou expressões que poderiam ser interpretados desta maneira, e
se Gilgamesh e
Enkidu não eram apenas amigos, mas amantes: “uma relação
homossocial ou homossexual? Não há contato sexual claro, mas a relação é
descrita de maneira erótica”. O British Museum optou deliberadamente
por não realizar uma exposição específica com as peças selecionadas para
o catálogo. A explicação é simples: achou-se que singularizar um
punhado de peças da coleção seria, mais uma vez, lidar com este tema
universal como um assunto de minorias.
- Não se trata de um estudo
da academia, como os que já foram feitos, que só será lido pela
comunidade ou pelos acadêmicos gays. O que queremos é despertar os
cidadãos em geral para o assunto. Estamos fazendo um trabalho para uma
audiência maior, para todos os públicos. Esta é uma História que
pertence a todos, que fez parte de todos os períodos em todas as
culturas - ressaltou Parkinson.
Mesmo assim, tudo o que está no
livro pode ser visto, seja virtualmente (a coleção completa do museu
está disponível em www.britishmuseum.org), seja ao vivo e em cores. As
coordenadas estão indicadas no site. Como nem todos os objetos estão em
exibição permanente por questões de conservação, recomenda-se o
agendamento prévio para estes itens específicos.
- A evidência do
desejo por pessoas do mesmo sexo e as ideias de gênero foram
sistematicamente deixadas de lado no passado, mas os museus, com as suas
coleções, podem nos permitir olhar para trás e identificar a
diversidade ao longo da História - afirmou o curador.
De acordo
com Parkinson, estes tipos de evidência, muitas vezes parciais e, em
alguns casos, ambíguas, foram sistematicamente escondidas ao longo da
História, ou simplesmente censuradas. Assim, o projeto do livro começou
quando o museu foi procurado por uma especialista que queria reunir
essas informações do passado. O curador admitiu que a iniciativa
enfrentou algumas dificuldades básicas, tais como a escolha das melhores
palavras para tratar o tema. Para ele, o emprego do termo “gay” está
longe de ser o mais adequado. O ideal seria “desejo por pessoas do mesmo
sexo”, que acredita estar mais descolado de rótulos, mas, reconheceu,
ele não atingiria o público geral com o mesmo entendimento.
-
Estamos falando do rótulo. Existem muitas maneiras de ser gay, não só os
estereótipos, e acho que “desejo por pessoas do mesmo sexo” é mais
adequado para falar deste passado mais distante. Não dá para usar o
mesmo rótulo dos dias de hoje - avaliou.
As peças no catálogo, que
já está à venda na loja do museu e nas principais livrarias londrinas,
também incluem objetos modernos, tais como bótons de campanhas pelos
direitos homossexuais.
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